sexta-feira, 19 de março de 2010

Francisca


Não aceito o lugar que reservaram pra mim. Eu não aceito o lugar para onde o dedo de Deus apontou e disse - Eis sua sina, Francisca! Eu finjo que não ouvi o que Ele disse, quando me botou nesse mundo contra a minha vontade. Queria vir não, queria vir não... Eu vim de má vontade, a parteira sentada na barriga, empurrando, empurrando... Até que não teve jeito e eu vim. Eu vim, mas cuspo um escarro grosso de macaca selvagem sobre o destino que aprontaram para mim antes de eu nascer. Minha mãe, preta boa da pele viçosa, nascida sob o Sol da costa da Mina, me dizia no seu Iorubá triste e cantado que a vida seria mais leve se eu aceitasse as coisas como elas vinham. Mas as tais "coisas", essas coisas vieram de modo que eu vim preta, mulher e escrava. Como é que a gente carrega leve o fardo de vir para o mundo para carregar ele nas costas? Nunca fui boa cristã. As negras velhas de engenho e os padres me diziam que o fardo seria suave e que a recompensa seria grande se eu aceitasse as vida como Deus a quisera para mim. Deus me quis preta, mulher e escrava. Que tipo de filho de puta é esse? Nunca fui boa cristã, não senhor! E eu quando eu penso que, sim, teria sido mais fácil me conformar, umas lágrimas vermelhas escorrem no meu rosto negro. Quando a gente morre e ainda tem raiva, as lágrimas calham de serem vermelhas, sei não porque. Morri preta e velha, livre e prestigiosa, rica, muito rica, cheia de filhos que eram uns bons cristãos e belos mestiços. Mas a raiva passou, não. Porque a vida não teve bondade comigo. Eu tive que brigar com a vida a vida inteira. A vida inteira - e foi longa a vida! Uma bela briga de pretas, essa a vida e eu! Nasci preta e morri mais preta ainda, que o Sol dessa terra é bom, mas castiga a gente. Mas a vida - a longa vida! - a vida que eu tive foi de mulher branca. Eu entrei nas igrejas. a cabeça coberta de renda e pés escondidos em sapatos vindos não sei de onde, de longe, do além mar. De onde meu senhor João Fernandes achasse bom me mandar trazer. João Fernandes de Oliveira, o único senhor que eu tive na vida. Nem Deus, que queria que eu fosse preta, escrava e que meus filhos fossem filhos do vento, mortos de alguma doença de índio. Meu senhor é e sempre será João Fernandes de Oliveira, que me viu preta e escrava e compreendeu, não sem alguma argumentação, que estava tratando com uma legítima rainha. Rainha nagô na cor, francesa na luxúria, portuguesa na barriga boa e espanhola nas vontades. Ouvi uma história de uma rainha espanhola que afanou as jóias da coroa e deu para um homem viajar o mar e descobrir essa terra. Penso que ela era uma mulher esperta. Precisei não roubar do meu senhor porque tudo que ele quis de mim eu lhe dei, e ele me foi generoso. Contam que eu mandei cavar um lago em Diamantina e contruir um navio no meu quintal, de modo que eu não morresse sem conhecer uma vaga idéia de mar. Não é mentira. Vai você dizer que eu não merecia? Acabou que as coisas correram bem e eu fui feliz. Não foi uma vida boa, mas eu fui melhor que ela e fui feliz, muito feliz. Nasci escrava e me fiz rainha. E agora você volta algumas linhas e se pergunta sobre a minha raiva. Pensa nas minhas perucas de cabelo natural importadas da França, dos maneirismos de sinhá que eu aprendi, nos meus dentes perolados, no amor de uma vida inteira, um amor tão grande que rainhas coroadas ouviriam histórias e chorariam sua solidão no cantos dos palácios e seus jardins. É que raiva é coisa que nasce com a gente. Fui escrava de corrente no tornozelo e vendida de peito nu na feira e, mesmo assim, me fiz rainha da Diamantina. Cheia de raiva. Eu era melhor que a Diamantina, era melhor que meu doce João Fernandes e que meus filhos saudáveis e cristãos. Eu era melhor que a vida que eu tive. Não te dá raiva isso, sinhá? A mim dá. E muita.

8 comentários:

Julia disse...

Rainhas com raiva e sem cabeça são sempre as favoritas.

:* ♥

Anônimo disse...

O meu favorito até agora

Polly disse...

E a gente reclama de tanta coisa e uma escrava se fez rainha! Conformismo é para os fracos!

Absurdo de bom ♥

bruna disse...

tipo, no fim a gente é melhor que a vida né? nasci branca e só me fudi, igual . vo morrer de raiva sem cabeça. heauhae

bruna disse...

e francisca e um nome lindo :~

Tangerina disse...

Xica da, Xica da, Xica da Silva...

Péssima maneira de começar comentário. Vamos fingir que nunca aconteceu. Essa aí é uma das maiores provas de que a teoria de "porque Deus quis" está errada, haha. Escrava virou rainha.

Ficou muito lindo, sabia? Eu adoro a história dessa mulher e ficou de uma dignidade tremenda.

E eu tava procurando um adjetivo melhor, mas só consegui pensar "é um texto bem May, mesmo". ♥

Anônimo disse...

Lindo texto, acredito piamente que escrevemos nosso destino, e a xica aí é apenas prova disso.

Mimieux disse...

O meu preferido te todos os textos que tu já escrevestes. Sim, ele é.

 
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