quarta-feira, 24 de março de 2010

It was a murder, but not a crime

Eu sou uma lâmina comprida suspensa por uma corda e unida a um portal de madeira. Meu nome é guilhotina e sirvo à revolução e aos homens como instrumento de tortura. Alguns diriam morte; eu acho que tortura é mais exato e mais bonito. Porque os que chegam a mim só chegam para causar terror nos que ainda estão por vir. Não sei se me faço clara. Sou a corda, a lâmina afiada, a madeira e o cesto onde as cabeças vão parar; também sou o apoio do pescoço do corpo do infeliz. E quantos infelizes já foram? Eu subo e desço em meio a risadas de escárnio. O povo me olha e ri junto: ri porque sou uma estrela! Escolhem uns franceses como marcos da Revolução, mas, francamente - eles só mandam que eu desça, mas quem é que corta jugular e carótida e estraçalha os ossos? C’est moi. E de quem eles lembram mais tarde? Eles os decapitados, é claro. Eu e o cesto, que também sou eu, somos a última coisa que aqueles olhos tristes e condenados vêem. Eu me divirto. Eu me regozijo. Eu desço rápida como um felino e dou um beijo fatal. É muito romântico, eu sou romântica demais para mim mesma. Eu só gostaria de poder andar pelas ruas da França e cantar aos meus súditos, pois é isso que eles são, cantar aos meus súditos cantigas de horror. Mas não posso, e eles vêm até mim. Você sabia, ah, mas eu aposto que não sabia, você sabia que o estado de medo é tal que vizinhos e parentes se acusam mutuamente por medo de virem a mim? Eu me delicio! Eu subo e desço, ritmada, com amor e ternura, e me vêm as cabeças e os aplausos, e no cesto elas sorriem para mim e para o próximo: foi bom para você? Ah! É ótimo! Agora vocês podem até ver. A mim está vindo alguém. Eu vejo a carruagem de madeira se aproximar e me vejo sendo polida. Afiam a minha ponta e eu me inundo de prazer. É uma moça que se aproxima, bem, talvez moça não lhe faça justiça, tem os cabelos bem brancos. Eu a encaro nos olhos nobres e cansados. Pode vir, minha querida, eu vou tratá-la com carinho. Rainha ou plebéia, ninguém passa por mim sem amor - ou com cabeça. Eu me rio e desço depressa. A cabeça no meu cesto é tão bela e triste quanto a que me encarou. Todas elas são. Todas elas são! Ah! Devo estar ficando doida.

2 comentários:

Tangerina disse...

HAHAHA, IMAGEM DIGNA. ♥

Mas enfim. Gente, que texto... foda. Não vou dizer "lindo", mas está tão divertido, eu fiquei rindo enquanto lia. Guilhotina sedução. Sério. Ficou muito foda mesmo.

Só você para fazer POVs de objetos inanimados, Rainha Júlia. ♥

Letícia Dias disse...

Vocês me surpreendem com cada texto, mas esse ganhou o prêmio!

Decapitação pelos olhos da guilhotina - é ou não é genial, minha gente?
Claro que é!

Super digno o título inspirado em Chicago ♥

 
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