quarta-feira, 17 de março de 2010

Palácio da Justiça

Maria que sugeriu que a coroação fosse na Abadia de Westminster. A Abadia era fétida e fria e Maria queria ver a coroa da Rainha da Casa de Tudor refletindo as pedras cinzas. Eu posso perdoar Maria. Fiz questão de presenciar seu próprio enterro, que não foi numa Abadia nem num mausoléu digno. Ou talvez tenha sido, pensando bem; Maria não era mesmo digna. Vejo professores, pois assombro professores, contando anedotas sobre Maria, que influenciava meu marido, que era amiga do Rei. Mas eu era mais que amiga do rei e veja só como hoje me apresento: só tenho cabeça em espírito, porque em espírito não tenho corpo. Eu ainda lembro bem daquela maldita espada fria, da cor dos olhos de Maria. Acho que foi uma vingança pensada. Henrique nunca deixou de gostar de Maria. Nem de Catarina, sejamos sinceros. Ah, eu mesma não gostava de Henrique. O melhor homem da Inglaterra em muito perdia ao pior da França. É que Henrique me proporcionou duas coisas: um, a realeza, e dois, a humilhação de Maria. Persegui Maria até o fim da vida dela. Durou muito, a infeliz. E folgo em dizer que foi infeliz mesmo. Eu pareço uma velha com essas fofocas. Mas é a satisfação post mortem, entendem? Fui destituída do poder de rainha, fui assassinada, fui acusada do que não fiz, e minha irmã, que aconselhou o rei a se desquitar, que aconselhou o rei a pedir a pena de morte, e que sussurrou ao pé do ouvido do rei que eu o traíra, é lembrada como uma dama de bom coração. Eu fui perseguida por toda a minha vida e por isso hoje me dedico a promover o caos em todos os corações infiéis. Infiéis em mim; cabe a Deus se preocupar com os que não o temem. Eu tomo o exemplo de Deus. Quando morri, uma voz torta, vinda da sombra, me disse: Você pertence à Terra, volte para a Terra. Passeei por Londres e por todos os condados. Achei minha irmã. Ah, Maria. Maria chorava muito e não era pela minha cabeça rolando no chão, sendo jogada numa caixa de madeira como se fossem os restos mortais de um animal. Maria estava sendo golpeada pelo marido. Lembro-me de ter visto papai batendo em mim; nunca em Maria, pele macia cheia de manchinhas avermelhadas. E agora o meu querido cunhado enchia de roxos a pele vagabunda de Maria Bolena. Uma morta não precisa esconder seus pecados. Eu sorri. Sou uma assombração sorridente, rio mole, me movo graciosa, tão graciosa quanto ser feita de vapor me permite; eu sempre fui requintada, bela, e não precisava de anáguas para isso. O mundo é cheio dessas imagens poéticas e simbólicas que despertam a curiosidade e a obsessão nas almas mais delicadas: gente sem cabeça, assombrações de torres, corações em punho. Eu explodi em minha alegria ainda não decomposta, sem um único verme a me devorar. Chora, Maria. Gritei Chora, Maria em seus ouvidos até o dia em que morreu. E morreu chorando. Nunca uma lágrima foi derramada por mim, mas quero o crédito que mereço por muitas dessas lágrimas. Eu nunca tive o que merecia. Mil dias. O que são mil dias? Estou morta há quinhentos anos! Meu irmão por vezes me segue na Torre. Ele gosta das minhas histórias sobre Maria e Joana. Não guardo rancor de Joana. Só pioro as histórias sobre Maria. Conto dos cabelos engrenhados e de sua estupidez submissa - Maria achava mesmo que devia obedecer por ser mulher - enquanto os sinos batem, e minha voz morta ecoa por toda a Londres, viajando junto com o vento, esfriando as cervejas quentes e arrepiando as espinhas dos infiéis. Conto as histórias e meu irmão ri, ri alto, seu espírito sem corpo balançando com as badaladas, e não contenho eu mesma o riso ao ver os infiéis fazendo o sinal da cruz. Depois nos damos as mãos e saímos a cantar: Chora, Maria, chora, Maria... Daqui até o túmulo de Catarina, o único lugar onde consigo descansar em paz.

3 comentários:

Mayra disse...

Daqui até o túmulo de Catarina, o único lugar onde consigo descansar em paz. [2]

Tangerina disse...

Vou acabar tendo que estudar a fundo todas essas histórias de rainhas, para ficar bem situada nos teus textos.

Ah, né. Teve a realeza de sempre, Júlia. Ficou um amor e eu fiquei com medinho da Ana Fantasma. q

Não, sério. Eu gostei muito, mesmo. Ficou bonito e poético. Eu amo tudo o que tu escreve, cara. ♥

Letícia Dias disse...

É interessante como, escrevendo sobre a mesma pessoa, você e a Mayra têm abordagens completamente diferentes! Ela focou-se na quase-obsessão da Ana pela Catarina, você no rancor (ainda que não seja essa exatamente a palavra) dela por sua irmã, Maria... E os dois textos ficaram geniais!

Adoro a intertextualidade que você usa pra ligar os trÊs posts *-*

 
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