sábado, 27 de março de 2010

A Rainha do País do Verão e de Toda a Bretanha, pt. 2


You had to choose a side at love and divide yourself in two
The way you were, long before you were walking civil war

Durante toda a viagem Lancelote não podia tirar os olhos de Guinevere, e Guinevere retribuiu os olhares já prediposta à traição. O fenômeno de cada história ser diferente dependendo do contador não era mostrado aqui. Todos davam razão à futura rainha. Ela fora aceita por cavalos! Nem fora olhada no rosto! Talvez o rei nem se dignasse a desvirginá-la. Lancelote ainda não era tão assim amigo do rei, embora Guinevere nem sonhasse que um dia se tornariam como irmãos. Se dependesse dela, chegaria ao rei já maculada. Lancelote não aceitou o pedido mudo. E foram muito castos, de mãos dadas, na carruagem. Ninguém contava essa parte da história sem gargalhadas. A Guinevere já odiava a própria vida, você sabe, dinheiro não traz felicidade, e ser rainha também não. Agora a sua vida seria uma carruagem. De novo os cavalos. Ela queria cuspir-lhes as faces mas, ao descer, encarou aqueles olhos vazios e entendeu, ou achou que entendeu - os contadores faziam caras muito misteriosas, não explicavam a súbita compreensão da rainha. Suprimiu o cuspe na boca e, a mão ainda dada a Lancelote, foi encaminhada ao Grande Rei. Os trinta anos que se passaram podiam muito bem ter sido trinta dias ou trinta séculos, porque o espasmo de tédio que se tornaria a vida de Guinevere estava em franca expansão: uma pequena estrela que ia engolindo planetas pequeninos e meteoros ainda menores. E a gravidade crescia. Não que alguém falasse isso na época, mas ela muitas vezes foi comparada a tufões e ondas gigantes. As histórias divergiam porque cada uma contava uma aventura diferente da nossa rainha. Guinevere fumava, costume dos homens; tinha sempre cinzas nos ombros e o que antes eram sardas cor de chocolate agora eram queimaduras doloridas. Guinevere arranjava casamento para suas damas de companhia e acobertava suas traições. E Guinevere traía o rei. Todos os dias Guinevere traía o rei e traía o juramento ao pai. Ela trairia dez vezes por dia se fosse possível, mas Lancelote falhava em coragem. Lancelote amava tanto Guinevere, e amava tanto o rei... Pela primeira vez Guinevere vinha em primeiro lugar para alguém. Mas o Rei Arthur não se importava. Ele amava mais Lancelote do que amava Guinevere. E amava muito Guinevere. O Rei Arthur enchia Guinevere de jóias e vestidos, e contemplava a Rainha do País do Verão e de Toda a Grã-Bretanha com amor nos olhos e reluz na coroa de ouro. A coroa de ouro não ficaria bem em Guinevere, por isso ele jamais a emprestava, e a Rainha, de jóias reais, só tinha gargantilhas. Guinevere não sabia ler e fingia receber com encanto as cartas amorosas de Lancelote. Uma vez, o Arthur, olhe só como ele era um cara prático, resolveu contar a ela tudo que estava escrito. Ele mesmo escrevera. Guinevere rasgou as cartas ali mesmo, na frente do rei! Imagine só a ousadia! Mas não era a única ousadia. Guinevere mandou o rei trocar a bandeira das tropas por uma cruz. O povo amou mais ainda Guinevere. Uma rainha católica e santa é melhor do que qualquer rei. Mas Guinevere não era católica, não era nada. Era imersa em sentimentos silenciosos e debaixo daquela pele clara e daqueles membros frágeis e daquele corpete apertado e daqueles olhos meio violeta e daquelas manchas amareladas entre os dedos e daqueles pés machucados e aqueles joelhos arranhados havia uma fúria que se debatia como o oceano que afundava civilizações inteiras. A fúria ia e vinha em ondas, e não respondia aos movimentos lunares, mas sim à força gravitacional do tédio-estrela de Guinevere, que a essa altura já tinha a magnitude do nosso Sol, e engolia todo o hidrogênio da ponta da Via Láctea para condensar em hélio. Guinevere gostava de montar no cavalo preferido do rei e fazer sexo com Lancelote na cama do rei, por vezes com o rei. Guinevere fazia isso porque não tinha apenas raiva, tinha ódio. Meros cavalos. Ela nada mais era do que o preço a se pagar por cabeças de cavalos. O ódio esterilizara-lhe o útero, mas ela não lamentava, e os homens sempre se chocavam com essa informação, pois na sua cabeça toda mulher quer ter filhos; as mulheres que ouviam a história jamais se chocavam. Arthur não teria seu herdeiro. Lancelote teria. Quando Lancelote se casou, a pedido de Arthur e Guinevere, que precisavam de um herdeiro ao trono e à coroa-de-ouro-que-Guinevere-não-podia-tocar, casou-se com uma moça escolhida e moldada por Guinevere. A futura mãe do futuro rei. Guinevere mandou fazer a ela um vestido e mandou plantar cravos-de-defunto no jardim, para o dia em que a esposa de Lancelote morresse.

3 comentários:

bruna disse...

tédio-estrela.
demais. mimimimimi. pobre guinevere, era ainda mais louca que nós.

Mayra disse...

estou bêbada de guinevere. ia ler só quando postasse a última parte, mas não resisti. e não me arrependi. é bonito, é sacana, é triste. é a sua cara. parte III, por favor.

Tangerina disse...

Guinevere maldita. D=

Mas claro, como é seu, sempre fica bom de se ler. Mesmo que fosse um texto sobre... sei lá, a mulher do Hitler ou algo assim.

... ele era casado, não era?

Enfim, como sempre, uma beleza e maldade tremenda. ♥

 
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