domingo, 4 de abril de 2010






Um homem sempre perdoa os pecados de outro homem. Mas os pecados de uma mulher... Bem, pense em Eva e o assunto se encerra. Não me importa. Eu penso nos homens que me condenaram: Danton, Robespierre, Marat, Guillotin. Homens de boas intenções. Monsieur Guillotin pensava num modo rápido e indolor de cumprir com a justiça, havia genuína bondade nesse intento e genuína tolice. Os outros três, imagino que tudo que desejavam construir era um mundo onde a fome do povo não alimentasse os diamantes no pescoço de uma rainha decorativa. Homens de boas intenções, cujos assassínios, incoerências, traições e erros não apenas foram perdoados, como foram amigavelmente esquecidos pelos livros de História - obviamente escritos por outros homens, cuja natureza das vontades ou intenções eu desconheço e não despertam meu interesse. Meus devotados homens de boas intenções entraram para a História desse mundo como visionários revolucionários e se agradece a eles pelas infinitas possibilidades que sua revolta popularesca proporcionou ao mundo dos homens. Quando se pode matar a monarquia, o céu é o maldito limite. E entrando para os livros, eles grantiram neles o meu lugar. A morte do rei e da rainha da França, ligeiramente vergonhosas e coisa de que não se deve falar muito nos corredores da Sorbonne, dano colateral da maior, melhor e mais eficiente revolução que o mundo conheceu. Eu, educada na religão católica apostólica romana dos meus pais e dos pais deles, penso nos meus pecados. Pecados nunca esquecidos, nunca perdoados. A rainha dos diamantes, a rainha das festas, a rainha cercada de gente jovem e alegre, a rainha do 'comam brioches'. Pecados de cultura pop, pecados de cinema. Os homens de boas intenções que nunca colocaram nos autos do meu julgamento que a arquiduquesinha da Áustria, apertada nos seus espartilhos, ansiosa por um bom banho e cansada de uma longa viagem, nunca teve uma escolha. Nunca conheceu outra vida. Nunca soube mais do que latim e jardinagem e que aos pobres se deve amar, sorrir, estender as mãos alvas e dar algum pão. Uma rainha deve ser esposa e mãe, foi como me ensinaram e como eu aprendi, a despeito de gostar um bocado de festas. Paris é uma festa! Louis não fazia tipo festivo, mas não se importava que eu fosse jovem e alegre enquanto era tempo de ser jovem e alegre. Tive tão pouco tempo! Obrigada, Louis! Eu amei meu tímido Louis e Louis me amou, porque foi assim que nos ensinaram. Era fácil amar Louis, tímido e servil, talvez um pouco tolo, amante de corridas de cavalos e banquetes suntuosos, criado solitário entre amantes do rei, efeminados e homens de armas, imensamente sedento de amor e atenção. Penso que deva ter sido difícil para ele amar uma arquiduquesa de raízes bárbaras, arredia, a pele ainda ruim de adolescente, um tanto mais alta, vaidosa, voluntariosa, amiga de militares, damas de fama duvidosa, frequentadora de óperas e festas até o amanhecer. Obrigada, Louis, meu pobre rei descoroado e decapitado, obrigada! O rei da França foi perdoado pelo tempo. Teria sido completamente esquecido, se não tivesse sua imagem constantemente associada à minha e eu lhe peço perdão por isso. É estranho pedir perdão por ter sido boa no papel que nasci para desempenhar: Rainha. Fui uma boa rainha numa época em que rainhas estavam fora de moda. Posto isso, teria sido justo ter entrado para seus livros como uma rainha corajosa. Uma rainha fora de época, a rainha que fecharia para sempre a porta das rainhas de sonho, doces confeitados e brioches. Eu fui corajosa. A última e corajosa rainha-consorte de contos de fada numa época de homens, máquinas de fumaça e vapor e revoluções armadas. Meus amados homens de boa vontade e armas. Eu os recebo no círculo do Inferno reservado aos de boa vontade, eles me olham com surpresa, eu beijo suas testas, eles se curvam aos meus pés. Se não havia espaço no mundo para tanta boa vontade, pois haverá no inferno dos que foram emboscados, traídos, decepados. Eles concordam e me reverenciam com suas cabeças deslocadas do corpo. Eu os convido ao meu Petit Trianon. Eles se sentam ao meu redor, pernas cruzadas como meninos e perguntam curiosos sobre Louis. Nunca mais, meus senhores, nunca mais. Talvez lhe faltasse a vontade inflamada que em nós sobra e vaza pelas artérias expostas de nossos pescoços. Deve haver um outro inferno para os reis doces e passívos. Eles concordam. Casualmente, enquanto comem, confessam outros tempos que teriam me amado e me seguido com máquinas que disparam luzes. Sim, eu lhes digo sem uma ponta de amargura, hoje, época farta de brioches e revoluções, eu teria sido amada, tão amada, com tanta devoção e intensidade, que talvez essa necessidade de mim terminaria por me encurralar entre os ferros retorcidos de uma carruagem e o muro de um túnel, a cabeça esmagada, longe do meu rei, perto de traidores e carrascos, as luzes piscando para mim, na noite bela Paris. Paris, Paris, Paris, que é sempre uma festa!


Maria Antonieta da Áustria e da Lorena, trinta e oito anos, viúva do rei da França.

5 comentários:

Letícia Dias disse...

me chame de louca, mas, no final, quando ela fala que hoje em dia seria amada, só me veio Lady Gaga na cabeça.
ah, vá, elas tem lá certa semelhança, eu acho...

Julia disse...

Eu não gosto de eleger preferidas, mas a Maria Antonieta força! hahaha

Jey disse...

me chame de louca, mas, no final, quando ela fala que hoje em dia seria amada, só me veio Lady Gaga na cabeça.[2]
nada mais justo uma rainha que revolucionou a releza da época renascer como a gaga. acho que uma dignidade e vingança enorme ♥

Tangerina disse...

O QUE FOI ISSO?

Não, May. Sério. Como assim? Como você ousa fazer um texto tão foda, tão bom, sobre uma das Rainhas mais-mais? Sério. Eu fiquei completamente estática quando acabei de ler. Ficou lindo, lindo, ficou digno, ficou foda e ficou real. Ficou... estou até sem palavras, cara. Foi lindo, mesmo, mesmo, mesmo. Caramba. Emocionei-me.

Diana disse...

Como assim Lady Gaga? Foi uma referência direta a Diana, não? Ou eu estou muy louca?

 
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