sexta-feira, 21 de maio de 2010

As cinzas do Elba

Munique não se estende em planícies e imagens poéticas. A capital da Bavária se parece com qualquer outra grande cidade do mundo: prédios altos e cinzas, chão duro e cinza, pessoas duras e cinzas. É o lugar perfeito para se conhecer um grande amor — ou, pelo menos, foi a história dela. Um senhor mais velho e baixinho muito interessado na moça de dezessete anos, estagiária do estúdio de fotografia.

Algumas coisas apenas as câmeras podem captar. É um modo como a luz entra e é apreendida, e qualquer coisa pode afetá-la ou transformá-la; é uma união de foco e luz, e as cores só existem por causa da luz, por como ela atravessa, sua reflexão e refração.

Em Munique, no outono amarelado e cinza de 1929, a moça de dezessete anos, estagiária do estúdio de fotografia, tirou uma foto do senhor mais velho e baixinho que estava muito interessado nela. Ele não a estava olhando. Ria afetado com o dono da loja, uma das mãos no bolso do terno marrom, velho mas em bom estado, bem alinhado, feito sob medida. A moça de dezessete anos, estagiária do estúdio de fotografia, captou um senhor mais velho e baixinho que de todo não se parecia muito com aquele senhor, real, mais velho e baixinho. A sua foto em preto e branco mostrava-o mais altivo, mais decidido, até mesmo mais alegre do que ele parecia ao rir de verdade.

Em Munique, a parte mais movimentada, barulhenta e diversa de toda a Bavária, que é por si só a parte mais movimentada, barulhenta e diversa de toda a Alemanha, as moças de dezessete anos, estagiários do estúdio de fotografia, são impressionáveis até mesmo com fotografias em preto e branco. Elas às vezes tentam se matar. Elas às vezes tentam se matar duas vezes. A estagiária em questão deu sorte; o senhor baixinho da fotografia virou-se para ela e sorriu. E tornou a sorrir no ano seguinte. E sorriu quando ela se recuperou do primeiro quase-suicídio. E chorou quando ela se recuperou do segundo.

Os hábitos morrem devagar, e o da fotografia morreu com a estagiária, que nem era mais estagiária nem mais tinha dezessete anos. Ela continuou surpreendendo o senhor baixinho com lentes. E se mudou de Munique, onde tanto fazia ser outono ou primavera.

Em Berlim era sempre primavera. Mesmo quando estava nevando, sempre havia flores em Berlim. É a impressão que você teria ao ver as fotos da moça: ela também surpreendia as poucas flores que nasceram durante a guerra. Ela também surpreendia os espelhos e os amigos do senhor baixinho e mais velho. Muitos anos depois de sua morte, ainda era lembrada como uma moça muito bonita, muito delicada, muito bem arrumada. Não havia muito o que falar de ruim dela. É por isso que não falaremos.

O senhor baixinho e mais velho muito tinha a dizer sobre muitas coisas, mas pouco dizia sobre ela. Ele gostava de ouvi-la falar; era a única pessoa em toda a Alemanha que podia falar mais do que ele. Ela não gostava disso. Ela não gostava de nada. Ela gostava de suas fotos, de suas flores, de suas roupas, de suas revistas. Ela não gostava de Munique. Não gostava da Bavária. Gostava um pouco de Berlim; gostava um pouco da Alemanha; gostava um pouco do senhor baixinho e mais velho. Estava sempre incerta quanto a si mesma. Gostava do vestido preto que usou no próprio casamento.

O mais notável e curioso que se pode dizer sobre essa moça é que ela cortou a própria cabeça antes que se atrevessem a querê-la decapitada.

Eva Braun foi a última rainha da Alemanha.

 
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