terça-feira, 16 de novembro de 2010

Average


Não é especialmente bonita, o cabelo é da mesma cor da pele, corte pouco ousado que não valoriza as linhas comuns do rosto; nem muito magra, nem gostosa. Não chama atenção. Média. Gosta de vestir tons pastéis e tons de terra. Filha de um sujeito rico, dono de alguma coisa, tem uns irmãos bem mais legais e descolados que ela. Estudou em bons colégios, tirou sempre boas notas. Até o momento não deu mostras de talento. Gosta de História da Arte, sonhou em ser princesa quando criança e tinha fotos do Príncipe William na parede do quarto quando quase adolescente. Dizem que seu romance floresceu em uns momentos a sós na casa de Balmoral, uma agradável locação que Camila conheceu melhor que Diana. (O chão desses pequenos castelos é manchado de sangue e de porra, espero que ela saiba. Essas garotas são esperta, ela deve saber.) O emprego de meio período na empresa do pai não lhe pareceu muito realizador, mas sabemos que nem mesmo uma princesa pode ficar sem trabalhar hoje em dia sem ser criticada. (Todo mundo está vigiando a gente o tempo todo, não importa quantos acordos a gente tente fazer com a impresa. Os olhos deles estão sempre espiando quando a gente passa). Comprou uma câmera fotográfica bem cara, conheceu Mário Testino e acha que é fotógrafa. Bem-vinda, Lady Kate Middleton. Sente, cruze as pernas como uma moça e tente impressionar. Os tapetes onde você perdeu a virgindade parecem ser de bom agouro e tudo mais, mas é bom manter em mente que esse anel de safiras no seu dedo custou uma cabeça de rainha. Uma rainha das grandes. Bem-vinda e muito boa sorte.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Where is our Queen? Where is her flag?

 
É decididamente irônico, concluiu a princesa, se soerguendo do carro em chamas, que eu tenha tentado morrer duas vezes e só tenha conseguido quando não fazia mais questão. O asfalto estava quente, ou estaria, se ela estivesse viva e sua pele ainda pudesse absorver qualquer coisa. Ela também teria suspirado se pudesse suspirar. A ironia em vida tem um gosto gelado e seco; é como engolir vidro, se você pudesse engolir vidro. A ironia em morte é parecida, mas tudo na morte vem acompanhado de uma inenarrável e inexplicável paz. É como engolir vidro, mas não parece tão ruim. A princesa equilibrou-se nos pés mortos e examinou a si mesma no chão, as pernas quebradas e retorcidas e cicatrizes novas pelo corpo. Não tardou a sentir novamente os flashes das câmeras. A perseguição em vida tem um gosto adstringente e enjoativo; é como engolir comida estragada, mas precisar engoli-la. A perseguição em morte tem gosto de raiva, mas a princesa de Gales sente tanta raiva, em vida e em morte, que a raiva tem gosto de tédio, de um rolar de olhos impaciente, de preguiça de deparar-se com o próprio rosto em mais jornais e revistas do que sua memória pode registrar. Durante a morte, a princesa não pensou no ex-marido. Charles ocupava seus pensamentos e seu sangue havia tempo demais; mas agora ela sequer podia se surpreender por não conseguir lembrar-se de sua existência. A princesa caminhou etérea sobre o próprio corpo, o corpo do namorado e o do motorista mortos, subiu nos restos do carro e viu-se novamente fotografada, dez cliques por segundo, quinze cliques por segundo, até que seus olhos mortos doessem. Seu corpo foi dilacerado vezes demais; quando viveu com Charles, quando tentou morrer, quando o carro bateu, quando seus ossos todos se partiram, quando as câmeras captaram a luz de sua morte e não conseguiram visualizá-la serena, fantasmagórica, raivosa e entediada sobre a última imagem que o mundo veria dela. A morte não tem gosto, e a Princesa Diana de Gales deixou-se sumir da existência com uma primeira e última satisfação.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Nevermind the Bollocks!










quinta-feira, 23 de setembro de 2010

The King's Beloved Sister

Eu não sou rainha porque sou feia. O motivo é esse. Eu sou feia. Não é que rainhas não possam ser feias, é que eu, que sou feia, não posso ser rainha. Posso ser a irmã do duque. Se eu tivesse nascido princesa, acabaria sendo rainha. Uma rainha feia. Que diferença faz? Mas quando se nasce príncipe a gente quer casar com as moças bonitas. Eu não o culpo. Não é culpa dele. É culpa minha ser feia, mas tudo bem. Tudo bem mesmo. Como irmã do duque, todos me achavam bonita. Eu gostaria de não viver entre os extremos. Como irmã do duque, eu era muito bonita e portanto não podia ou precisava de cérebro. Eu ainda não preciso. Ninguém me cobrava cérebro. Eu era bonita. Uma bela irmã-de-duque sem cérebro. Eu era bonita para os germânicos, penso. Sim, os germânicos vêem tudo diferente dos outros. Para eles eu era bonita, e para eles eu era estúpida. Para os ingleses eu também era estúpida. Desse estigma nunca me livrei. Estúpida. O problema é que eu podia ser estúpida em território germânico, pois era bonita para o Sol que nascia para nós; mas, na Inglaterra, como, além de feia, ser estúpida? Não quero falar de justiça. Também não quero falar de culpa. Eu não quero falar de nada; sou estúpida; e não sou rainha unicamente porque Henrique não me julgou suficientemente bonita. Tudo bem. Henrique foi um amante carinhoso. Agora acho que já posso ser sincera. Oras, é claro que o casamento foi consumado. Eu posso não ser bela, e posso não ser inteligente, e posso não atrair todos os olhares como a outra Anna atraía, mas por que Henrique não consumaria nosso casamento? Henrique era muito gentil. Eu não queria mesmo ser rainha. Eu vou admitir que o que me manteve viva e na Inglaterra por tantos anos foi uma fúria sem precedentes. Eu merecia mais. Eu acho que não dá para colocar uma coroa na cabeça sem criar um pouco de raiva. Eu não sei de onde surgiu, mas sei que assumi meu posto como a mais amada mulher do rei com uma dor que feria, não uma dor de quem lamenta, mas de quem quer fazer lamentar. Eu esperei com paciência e ódio. Eu posso não ser bonita; não sou bonita. Mas cerzi uma bonita tapeçaria sobre meus seis meses de rainha. Eu nunca tinha sido tomada por algum sentimento antes. Quero deixar claro que nunca me senti rejeitada. Eu acho que sou orgulhosa demais para me sentir rejeitada. Eu não sou rainha porque sou feia. Eu vivi todos esses anos porque não fui rainha. Todos os dias da minha vida, ajeito a tapeçaria. Mesmo que eu espere até meu último dia, nunca serei rainha. Eu não culpo ninguém. Acho que nunca realmente quis ser rainha.

Anna de Cleves, a Amada Irmã do Rei

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Antropofagia



Aspira com força e com o nariz faz um barulho grosseiro. Não tem problema, ninguém pode ouvir através da porta do banheiro fechado e das muitas conversas da corte. A porta do banheiro de paredes cor de rosa se abre gloriosamente e todo mundo observa quando ela volta seu olhar altivo para o espelho. Nenhum dos olhares é discreto; só o do espelho imundo. As adolescentes passam por ela quase correndo, esbarram sem pedir desculpas, batem a porta do sanitário rosado com a força juventude e da pressa. Ela as observa enquanto o espelho fica perguntando quanto tempo faz. Quanto tempo faz agora? A filha e herdeira daquela velha timidez vulgar olha o espelho enquanto esfrega o batom vermelho nos lábios. Não é correto usar um batom forte com a maquiagem forte nos olhos, mas as regras não se aplicam no caso das rainhas. O espelho a faz lembrar com calma e com carinho que ela é a rainha desta noite. Como fora de todas as noites anteriores. Quantas noites? As meninas saem do banheiro e olham com sentimentos para a coroa e para os olhos da rainha. O batom vermelho explodindo nas bocas que acabaram de sair da infância. Ela sabe que as meninas querem ser como ela e as meninas sabem que ela sabe. Ela assente, sorri. Ela permite a ousadia da admiração. É uma rainha generosa. As meninas vão ser como ela um dia. Em alguns dias. Hoje, amanhã, depois. Ela mesma fora uma infanta atrevida correndo pelos jardins, sussurando histórias de alcova das grandes rainhas, gulosa de vida, esperando pela sua vez. Quando foi? Não faz tanto tempo. Ela pensa no tempo, corrige um borrão invisível da maquiagem. Ela teme o tempo. O tempo, o espelho a acalma, só fez consolidar seu reinado. Por quanto tempo? Ela tenta sorrir, mas uma rainha não se faz de muitos sorrisos, ela sabe. Caminha pelo bar arrastando o longo tecido do seu orgulho, respirando com força, ignorando a corte barulhenta que a observa e comenta boatos maldosos entre as garrafas de cerveja barata. A rainha encontra seus conselheiros, tão antigos quanto ela, mas tão somente homens. Um copo chega, um outro convite, as mesmas histórias, sorrisos que já foram risadas largas. Seus amados conselheiros, tão homens, com suas mesmas namoradas sonolentas vendo TV em casa. Houve um tempo em que eles tinham olhares cobiçosos, ela se lembra. As mesmas roupas, os mesmos templos, eles ficando cada vez mais impassíveis, cada vez mais duros, cada vez mais vazios de desejo. A vida cada vez mais gloriosa, cada vez mais sem paixão. Cada vez mais vazia de tudo. Estamos virando múmias, ela pensa. Não, não estamos virando múmias. Estavam virando estátuas. Ela sente sua pele coberta de muitas camadas finas de maquiagem quase branca e, pela primeira vez, sua pele parece pesada. Os olhos pintados de esconder olheiras, caricatos, o batom vermelho sumindo da boca molhada de bebida. Os movimentos lentos, calculados, cheios de pompa e tédio. O horror de tudo aquilo. Os olhares invejosos das meninas, as expressões famintas dos meninos. Todos muito jovens. E ela? Quanto tempo fazia? A pele ridiculamente branca, os movimentos precisos, sem significado. Quis correr para o espelho e ouvir o que ele diria, mas correr seria imprevisto e não havia mais espaço para movimentos bruscos. Queria perguntar ao espelho quanto tempo, quanto tempo agora? Os olhares respeitosos. A agourenta solenidade dos cumprimentos. As pernas brancas de fora, os peitos redondos no sutiã de ferrinho e bojo. O copo que nunca esquentava sem ser enchido novamente. As meninas, jovens, alegres, alteradas. As infantas pedem uma foto. Ela sabe que o flash da fotografia violentaria sua pele de mármore antigo, Deus sabe os danos que poderia causar! Quanto tempo? Quanto tempo? Ela engole o gosto amargo da majestade e sente e sabe e teme seu pescoço de mármore frio e antigo afinando, afinando, afinando... Até o dia que não suportará mais o peso da coroa. E então será tudo. Ela sorri para as infantas, com a firmeza permissiva de uma velha rainha mãe. Quanto tempo agora? Quanto tempo falta agora? A explosão de luz fere seus olhos. Uma nuvem de pó compacto e mármore voa lentamente pelo ar colorido pelas luzes da noite. As infantas agradecem com gritinhos infantis que se perdem na música alta. A mesma música tocada na mesma festa, todas as noites. A imagem do espelho presa para a eternidade. A rainha é morta, as meninas exibem sua cabeça e os homens comem seu coração.



domingo, 1 de agosto de 2010

O paradoxo da Rainha de Copas

The Queen had only one way of settling all difficulties, great or small. 'Off with his head!' she said, without even looking round.
  
A Rainha de Copas, a despeito de seu status de rainha consorte, era ouvida pelo Rei em todas as suas idéias e objeções e mil maneiras de agradar o reino e seus súditos. A Rainha de Copas era uma boa rainha, melhor até regente do que consorte, mas satisfeita com seu status de consorte, humilde e sem ambições, a rainha que qualquer rei sonharia em ter e calhou de ser do Rei de Copas, que por sua vez não fazia muita questão de obediência, humildade e todo o resto. Isso tudo até a chegada do valete, valete também de Copas, mas sem a letra maiúscula da Rainha e do Rei; uma carta menor do baralho, ainda que permanecesse uma carta e fosse de Copas. A Rainha e o Rei de Copas não podiam ter filhos e por isso chegou o valete, um primo distante, eles não sabiam ao certo; o Rei e a Rainha de Copas tinham muito bom coração e não duvidaram do valete, que aliás não devia mesmo ter sido duvidado. O valete era um bom valete, posto que o valete é uma carta alta do baralho e serve bem a todos os jogos, exceto talvez os de truco e os de ler a sorte. Como no poeminha tão pouco conhecido, chegou o valete de Copas roubar a Rainha de Copas; ela perdeu sua humildade, seu espírito sem ambições e teria perdido o status de rainha consorte se o valete não a tivesse impedido. O valete não queria se casar com a Rainha de Copas; mal queria o trono que seria seu quer quisesse, quer negasse. O valete só queria suas festas e suas moças e seus moços e seus banquetes, e a Rainha de Copas queria o valete e o valete e o valete e o valete e o Rei de Copas, desgostoso e traído, nada disse, pois era muito mais moderado, comedido do que a Rainha de Copas; pelo menos, era mais moderado, comedido do que a Rainha de Copas quando a Rainha de Copas estava apaixonada, coisa que estava agora, e nunca estaria pelo Rei. O Rei de Copas procurou uma solução que satisfizesse a todos, mas a Rainha de Copas, que nunca deixara de ser bondosa, mesmo agora que não era humilde e angariava algumas ambições, queria uma solução que compensasse sua dor. Bem, julgou o Rei de Copas, ao ouvir as argumentações sempre sensatas da Rainha, é justo fazer perder a cabeça a quem fez perder o coração. Cortem a cabeça dele! As coisas são engraçadas.

Para quem sente falta delas, e de nós.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

As cinzas do Elba

Munique não se estende em planícies e imagens poéticas. A capital da Bavária se parece com qualquer outra grande cidade do mundo: prédios altos e cinzas, chão duro e cinza, pessoas duras e cinzas. É o lugar perfeito para se conhecer um grande amor — ou, pelo menos, foi a história dela. Um senhor mais velho e baixinho muito interessado na moça de dezessete anos, estagiária do estúdio de fotografia.

Algumas coisas apenas as câmeras podem captar. É um modo como a luz entra e é apreendida, e qualquer coisa pode afetá-la ou transformá-la; é uma união de foco e luz, e as cores só existem por causa da luz, por como ela atravessa, sua reflexão e refração.

Em Munique, no outono amarelado e cinza de 1929, a moça de dezessete anos, estagiária do estúdio de fotografia, tirou uma foto do senhor mais velho e baixinho que estava muito interessado nela. Ele não a estava olhando. Ria afetado com o dono da loja, uma das mãos no bolso do terno marrom, velho mas em bom estado, bem alinhado, feito sob medida. A moça de dezessete anos, estagiária do estúdio de fotografia, captou um senhor mais velho e baixinho que de todo não se parecia muito com aquele senhor, real, mais velho e baixinho. A sua foto em preto e branco mostrava-o mais altivo, mais decidido, até mesmo mais alegre do que ele parecia ao rir de verdade.

Em Munique, a parte mais movimentada, barulhenta e diversa de toda a Bavária, que é por si só a parte mais movimentada, barulhenta e diversa de toda a Alemanha, as moças de dezessete anos, estagiários do estúdio de fotografia, são impressionáveis até mesmo com fotografias em preto e branco. Elas às vezes tentam se matar. Elas às vezes tentam se matar duas vezes. A estagiária em questão deu sorte; o senhor baixinho da fotografia virou-se para ela e sorriu. E tornou a sorrir no ano seguinte. E sorriu quando ela se recuperou do primeiro quase-suicídio. E chorou quando ela se recuperou do segundo.

Os hábitos morrem devagar, e o da fotografia morreu com a estagiária, que nem era mais estagiária nem mais tinha dezessete anos. Ela continuou surpreendendo o senhor baixinho com lentes. E se mudou de Munique, onde tanto fazia ser outono ou primavera.

Em Berlim era sempre primavera. Mesmo quando estava nevando, sempre havia flores em Berlim. É a impressão que você teria ao ver as fotos da moça: ela também surpreendia as poucas flores que nasceram durante a guerra. Ela também surpreendia os espelhos e os amigos do senhor baixinho e mais velho. Muitos anos depois de sua morte, ainda era lembrada como uma moça muito bonita, muito delicada, muito bem arrumada. Não havia muito o que falar de ruim dela. É por isso que não falaremos.

O senhor baixinho e mais velho muito tinha a dizer sobre muitas coisas, mas pouco dizia sobre ela. Ele gostava de ouvi-la falar; era a única pessoa em toda a Alemanha que podia falar mais do que ele. Ela não gostava disso. Ela não gostava de nada. Ela gostava de suas fotos, de suas flores, de suas roupas, de suas revistas. Ela não gostava de Munique. Não gostava da Bavária. Gostava um pouco de Berlim; gostava um pouco da Alemanha; gostava um pouco do senhor baixinho e mais velho. Estava sempre incerta quanto a si mesma. Gostava do vestido preto que usou no próprio casamento.

O mais notável e curioso que se pode dizer sobre essa moça é que ela cortou a própria cabeça antes que se atrevessem a querê-la decapitada.

Eva Braun foi a última rainha da Alemanha.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Gotas de sangue


Às vezes eu sinto falta da minha cabeça. Acho que as outras também sentem. Mas é que elas estão mortas mesmo e tudo o que dizem não passa de uma ilusão patética. Eu estou bem viva. E sem cabeça. E com sede, como vocês já sabem. Ah, eu suspiro. Eu sinto falta do meu crânio delicado, meu nariz fino, meus lábios cor-de-rosa. Eu sinto falta principalmente do sentido do olfato. Meu nariz era muito bonito. Às vezes me ocorre o que devem ter feito com minha cabeça. Será que enterraram? Queimaram? Sei que mantiveram minha coroa. Eu sinto falta dela. Sinto falta do cheiro, do brilho... eu não sinto falta de estar viva, o que é curioso. Só sinto falta das coisas que faziam estar viva - e ser Rainha, deus sabe que ser rainha é difícil - valer a pena...

 
Se a guilhotina doeu? Deixar a Áustria naquela fronteira fria e azeda foi muito pior. A França não é acolhedora. Não a princípio. Não quando se é tão moça... Paris, sim; mas a França, o resto, aquela paisagem agreste e fúnebre, vazia. Eu fiquei aterrorizada. A minha casa tão alegre, com aquele sotaque tão nosso, com o calor dos meus compatriotas e irmãos; e me encontrei numa terra onde a rainha era vestida pelas servas e onde vi poucos sorrisos ao longo de todos os anos. Eu morri cedo, mal tinha saído da adolescência; e quando cheguei lá era uma criancinha perdida. Não é por menos que fiz tantas festas! Eu tinha tanto medo, ah, minhas queridas, meus queridos, mesmo quando ganhei uma terra só minha foi naquela terra áspera e fria da França. Eu teria sido uma rainha melhor para o povo se me instalasse em Paris e nas suas luzes coloridas.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

L'amour

 Meu nome é Mayra e eu não sou rainha. Aliás, não era. Quando elas me convidaram para esse palácio estranho feito de nada acho que me tornaram uma delas. Não se preocupem, minha cabeça está muito firme sobre os ombros e o pescoço comprido. Elas aliás gostam muito da minha cabeça: tenho o rosto fino e acho que tenho mesmo cara de rainha. Elas seguidamente me dizem isso e eu agradeço e ouço e anoto. Minhas mãos já estão com calos por causa das canetas. Eu anoto tudo que elas dizem e tenho reproduzido fielmente. Elas mentem muito, e eu também. Mas me pediram que não falasse delas por enquanto, que falasse de mim mesma. Eu não sirvo para falar de mim mesma; escrever talvez; mas elas queriam que eu só falasse e dessa vez quem anotaria seriam elas. Quem segura as canetas é Maria Antonieta, ela mesma se oferece, retribuindo o favor. Eu vejo o papel se rasgar por baixo da ponteira. Ah! Certo! Eu. Eu fumo, tenho bom coração, tenho um caráter talvez duvidoso, tenho tatuagens — elas aliás são fascinadas por tatuagens, passam os dedos mortos pelas minhas com encanto — e escrevo. Talvez essa seja a característica mais importante. Não sei o que elas querem que eu diga. Não sei o que o mundo quer que eu diga, só sei o que eu quero dizer — e digo. Mas confrontada assim, nessas perguntas a queima-roupa, e com as minhas rainhas de testemunha? Eu às vezes tenho medo de que elas me ponham pra fora. Mas não vão, porque nos damos muito bem. E não é medo porque os tapetes daqui são tão mais bonitos — no meu quarto colocaram um bem felpudo com estampa de zebra, veja só que amor — e as cortinas tão mais bonitas e os vestidos e sapatos e roupas e vozes e histórias. Eu me sinto uma delas. Eu sempre me senti uma rainha coroada e minhas tatuagens, quase todas, se não são explicitamente coroas, têm alguma realeza implícita. É tão a minha cara, não duvido que vocês já tenham notado. Eu sou do tipo que tem coroas e corações tatuados e não sei me perdoar quando não me faço jus. O mundo pode me perdoar, mas vou contar às minhas rainhas um segredo: eu não sou o mundo. Eu não sei o que sou, mas não funciono como o mundo. Talvez eu só seja uma rainha. É, respondo para mim mesma, entre uma tragada e outra, olhando pensativa; eu sou uma Rainha.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Cinco de Novembro ou Bizarre Love Triangle

I see no reason
Why the Gunpowder Treason
Should ever be forgot
Tu sobe e desce cada vez mais rápido nesse homem e ele arranha as tuas costas. É uma cena que eu vejo todos os dias. Tu és uma piada, Isabel. Tu és uma piada e eu te amo tanto que me frustra. Tu te viras e agora o homem está em cima de ti e ele se movimenta com força, dá para ver que gostas pelo jeito que gemes. É vergonhoso, Isabel. Se eu não fosse uma massa de terra dividida em pequenos territórios, descansaria a cabeça numa das mãos. Mas eu sou uma massa de terra dividida em pequenos territórios e tu juraste amar apenas a mim! Não que eu seja ingênua e ache que tu estás amando este homem, embora sem dúvida sinta algum prazer. Ah, Isabel, eu não sei por que mentes para o povo. Eu sou mais velha do que tu e entendo melhor esta terra, até porque eu sou esta terra. Essa gente não se convence fácil assim. Quer tu prometas amor eterno a mim e apenas a mim, quer tu prometas amor aos raios que a partam, eles vão achar tudo muito ruim. Tua mãe morreu por menos que isso, tu sabes. Eu queria que tu me amasses mais. Tu passas tempo demais com esses homens. E com essas mulheres. É duro, tu não imaginas. Tu te sentas no trono com a tua coroa, ela ficava melhor na tua mãe aliás, e juras amor a mim, e fazes o teu trabalho, mas e eu, Isabel? Eu não posso lidar com isso. Tu só me amas aos olhos do público. É difícil. Essa coisa de rainha virgem porque casou com a Inglaterra. O nosso casamento muito me frustra, muito me decepciona. Eu há muito deixei de ter orgulho, Isabel. Eu me humilho na tua frente e eu nunca me humilhei ou subordinei a ninguém antes. Tu não responde aos meus terremotos, à minha frieza, e também não responde aos tempos de Sol, nem às colheitas fartas. Tudo isso sou eu, Isabel. Eu pedindo a tua atenção e tu, nada. Tu mal me olhas. Tu nem deves saber algo de mim. Porra, Isabel. Tu me fazes pensar em ti o dia inteiro, tu me fazes estudar cada movimento, tu me juras amor - e eu acredito! - e finges que vai cumprir as tuas promessas... eu queria ter dois braços e uma cabeça e descansá-la tristemente sobre ambos. Não é isso que tu fazes? Devias pensar na tua mãe. Ela não pode mais fazer isso. Nem eu. Eu até tento te assustar com esse papo de não ter cabeça, de assombração. Tu não me escutas. E queres saber? Eu acho que tu nem acreditas em mim. Às vezes eu bem que queria que tu tivesses um rei e não desses a ele um filho homem. Tu me machucas, Isabel, e eu nem consigo ou posso retribuir como mereces. Que falta me faz um bom machado! Enquanto isso tu te deitas e te levantas e me juras e me mentes e eu sofro calada, Isabel. Até a tua mãe teve mais voz. God save the queen! Mas se eu fosse Deus e não uma pequena ilha com territórios forçosamente anexados Deus te faria em pedaços, sem nem te dar a mística de ser uma rainha sem cabeça.


Every time I see you falling I get down on my knees and pray...

domingo, 4 de abril de 2010






Um homem sempre perdoa os pecados de outro homem. Mas os pecados de uma mulher... Bem, pense em Eva e o assunto se encerra. Não me importa. Eu penso nos homens que me condenaram: Danton, Robespierre, Marat, Guillotin. Homens de boas intenções. Monsieur Guillotin pensava num modo rápido e indolor de cumprir com a justiça, havia genuína bondade nesse intento e genuína tolice. Os outros três, imagino que tudo que desejavam construir era um mundo onde a fome do povo não alimentasse os diamantes no pescoço de uma rainha decorativa. Homens de boas intenções, cujos assassínios, incoerências, traições e erros não apenas foram perdoados, como foram amigavelmente esquecidos pelos livros de História - obviamente escritos por outros homens, cuja natureza das vontades ou intenções eu desconheço e não despertam meu interesse. Meus devotados homens de boas intenções entraram para a História desse mundo como visionários revolucionários e se agradece a eles pelas infinitas possibilidades que sua revolta popularesca proporcionou ao mundo dos homens. Quando se pode matar a monarquia, o céu é o maldito limite. E entrando para os livros, eles grantiram neles o meu lugar. A morte do rei e da rainha da França, ligeiramente vergonhosas e coisa de que não se deve falar muito nos corredores da Sorbonne, dano colateral da maior, melhor e mais eficiente revolução que o mundo conheceu. Eu, educada na religão católica apostólica romana dos meus pais e dos pais deles, penso nos meus pecados. Pecados nunca esquecidos, nunca perdoados. A rainha dos diamantes, a rainha das festas, a rainha cercada de gente jovem e alegre, a rainha do 'comam brioches'. Pecados de cultura pop, pecados de cinema. Os homens de boas intenções que nunca colocaram nos autos do meu julgamento que a arquiduquesinha da Áustria, apertada nos seus espartilhos, ansiosa por um bom banho e cansada de uma longa viagem, nunca teve uma escolha. Nunca conheceu outra vida. Nunca soube mais do que latim e jardinagem e que aos pobres se deve amar, sorrir, estender as mãos alvas e dar algum pão. Uma rainha deve ser esposa e mãe, foi como me ensinaram e como eu aprendi, a despeito de gostar um bocado de festas. Paris é uma festa! Louis não fazia tipo festivo, mas não se importava que eu fosse jovem e alegre enquanto era tempo de ser jovem e alegre. Tive tão pouco tempo! Obrigada, Louis! Eu amei meu tímido Louis e Louis me amou, porque foi assim que nos ensinaram. Era fácil amar Louis, tímido e servil, talvez um pouco tolo, amante de corridas de cavalos e banquetes suntuosos, criado solitário entre amantes do rei, efeminados e homens de armas, imensamente sedento de amor e atenção. Penso que deva ter sido difícil para ele amar uma arquiduquesa de raízes bárbaras, arredia, a pele ainda ruim de adolescente, um tanto mais alta, vaidosa, voluntariosa, amiga de militares, damas de fama duvidosa, frequentadora de óperas e festas até o amanhecer. Obrigada, Louis, meu pobre rei descoroado e decapitado, obrigada! O rei da França foi perdoado pelo tempo. Teria sido completamente esquecido, se não tivesse sua imagem constantemente associada à minha e eu lhe peço perdão por isso. É estranho pedir perdão por ter sido boa no papel que nasci para desempenhar: Rainha. Fui uma boa rainha numa época em que rainhas estavam fora de moda. Posto isso, teria sido justo ter entrado para seus livros como uma rainha corajosa. Uma rainha fora de época, a rainha que fecharia para sempre a porta das rainhas de sonho, doces confeitados e brioches. Eu fui corajosa. A última e corajosa rainha-consorte de contos de fada numa época de homens, máquinas de fumaça e vapor e revoluções armadas. Meus amados homens de boa vontade e armas. Eu os recebo no círculo do Inferno reservado aos de boa vontade, eles me olham com surpresa, eu beijo suas testas, eles se curvam aos meus pés. Se não havia espaço no mundo para tanta boa vontade, pois haverá no inferno dos que foram emboscados, traídos, decepados. Eles concordam e me reverenciam com suas cabeças deslocadas do corpo. Eu os convido ao meu Petit Trianon. Eles se sentam ao meu redor, pernas cruzadas como meninos e perguntam curiosos sobre Louis. Nunca mais, meus senhores, nunca mais. Talvez lhe faltasse a vontade inflamada que em nós sobra e vaza pelas artérias expostas de nossos pescoços. Deve haver um outro inferno para os reis doces e passívos. Eles concordam. Casualmente, enquanto comem, confessam outros tempos que teriam me amado e me seguido com máquinas que disparam luzes. Sim, eu lhes digo sem uma ponta de amargura, hoje, época farta de brioches e revoluções, eu teria sido amada, tão amada, com tanta devoção e intensidade, que talvez essa necessidade de mim terminaria por me encurralar entre os ferros retorcidos de uma carruagem e o muro de um túnel, a cabeça esmagada, longe do meu rei, perto de traidores e carrascos, as luzes piscando para mim, na noite bela Paris. Paris, Paris, Paris, que é sempre uma festa!


Maria Antonieta da Áustria e da Lorena, trinta e oito anos, viúva do rei da França.

sábado, 3 de abril de 2010

América, Europa e um continente à escolha



O problema dos historiadores, pensa o fantasma da Princesa do Brasil, é que eles gostam exatamente daquilo que eu mais desprezo: o pó! Eu não queria nem sequer o pó daquela terra e aquela terra está cheia de gente querendo o meu pó. Carlota rendeu mesmo muito pó quando morreu; quis ser enterrada com uma coleção de sapatos, fato que a família ocultou por benevolência, e porque já tinham laços com loucos o suficiente; Maria de Bragança e Portugal era, afinal, a sogra de Carlota Joaquina. Que não queria nem o pó do Brasil, nem o de Portugal: menos ainda da França, e tinha Bourbon por duas vezes no sangue! Os historiadores, que são aliás uns fofoqueiros, uns podres, só queriam saber do pó de Carlota, deixem meu pó em paz! Não escavem minha sepultura. Era um tédio ser princesa do Brasil porque o Brasil não era propício para princesas. Era terra de gente gentia, suja, reclamona. Uns infelizes que só queriam saber de problemas sociais. Ninguém queria falar em casamento e tecidos novos. Menos ainda de sapatos. Não que eu fosse fútil assim. Carlota não era fútil, entendia muito dos problemas dos escravos e das infelicidades dos pobres, mas também me achava pobre! Pobre de espírito, veja que Carlota Joaquina, por ser mulher, não tinha voz na corte nem em lugar algum. Ela era um enfeite e se eu não me acostumasse a ser um enfeite o que seria da minha vida? Mas fui muito rebelde; Carlota sem dúvida deu muito trabalho, preocupou muitas cabeças, e mesmo assim saiu com a dela bem coladinha ao pescoço. Se não fosse um enfeite talvez pudesse ver aquela história dos pretos, porque eram mesmo muito tristes aqueles pobres pretos. Carlota Joaquina era uma das poucas soberanas que não eram racistas; mas, pensando bem, eu nem sequer era uma soberana. Princesa do Brasil. Bem certo que fui Rainha de Portugal um pouco, por pouco tempo, e fiz poucas coisas, umas traições, uns trâmites, causei lá alguns problemas; mas Portugal tem o tamanho do meu sapato e a sola do meu pé mede vinte e três centímetros, aliás media, porque Carlota está morta. E o Brasil muito devia a ela, muito devia a mim, porque veja, o Brasil era imenso, ainda é, está maior agora porque tem mais terra, e toda aquela terra devia ter ficado sob o meu comando e teríamos feito maravilhas, mas não me deixaram! Não podia mandar neles e não podia desmandar; no primeiro eu seria fútil, no segundo ela seria insuficiente. Se eu bebia muito era feio, e se não fazia nada eu não era nada também. E eu não podia ser nada, mesmo que o Brasil me tenha negado. Pois eu nego o Brasil também! Desta terra continuo não querendo nem o pó. Nesta terra quero que tudo se exploda e vire tão pó quanto eu! Brasil, Portugal, Espanha, França, todos os lugares que me negaram. Neguem Carlota Joaquina na morte! Eu espero só que a guerra destrua cada centímetro desse amontoado de lixo até ficar do tamanho da sola do meu pé e eu possa pisar nas gerações de reis e rainhas e príncipes e princesas que não me deixaram fazer nada.

domingo, 28 de março de 2010

A Rainha do País do Verão e de Toda a Bretanha, pt. 3


 She's a Killer Queen
Gunpowder, gelatine,
Dynamite with a laser beam
 

 O reinado de Arthur durou trinta anos e depois ele foi dado como desaparecido. Foi pranteado e ganhou um enterro simbólico, com os melhores bardos da Inglaterra e violinos Stradivarius. A música que lhe foi dedicada fora decidida pela rainha, que não tinha qualquer noção de instrumentos ou notas, mas dera ao maestro uma idéia e supervisionara os arranjos. A rainha não derramou uma lágrima e o povo viu - mas o povo ficou ao seu lado. Guinevere desinteressante, Guinevere sem graça, Guinevere pudica. O povo adorava. O povo se enxergava nela. A perdedora que virou uma rainha só por causa de cavalos. Essa era a parte preferida dos contadores da história, porque até aquele momento todos já conheciam, bastava ter um avô vivo para saber. É que a lavadeira da rainha esfregou os lençóis mais vermelhos que o país já havia visto. E Guinevere não tentara esconder o machado. Ninguém sabia de onde ela tirara o machado. Talvez do jardim; talvez tivesse um caso com o jardineiro! Talvez tivesse pedido a Lancelote! Mas Lancelote chorava tanto pela morte do rei e definhara logo em seguida... a verdade que as histórias tentavam sondar era muito simples. Um dia Guinevere achou que já tinha esperado demais. Transformara-se numa violenta supernova. Sua força era tão grande e assassina que a galáxia seria reduzida a pó. Arthur fora dormir jurando à esposa que a Bretanha agora estava em paz e não acordara porque não se pode acordar sem uma cabeça colada ao corpo. O machado era muito pesado para as mãos delicadas e sem calos de Guinevere. A coroa era muito dourada para a cor apagada dos cabelos de Guinevere. Ela era tão doce e insignificante que sequer foi acusada de matar o marido. Afinal, Guinevere o amava. Talvez não como amava Lancelote, porque amar Lancelote era amar a vaidade e a vaidade era ela mesma, e acima de tudo Guinevere amava a si mesma, até que Lancelote definhou pela morte do rei e ela mandou enterrar o corpo de Lancelote no sul da Inglaterra, onde o verão durava seis meses, a milhas e milhas do corpo do rei. Mas Guinevere também amava Arthur e sua gentileza, Arthur e seu amor, Arthur e sua ingenuidade. E a coroa de Arthur. Com o corpo, a espada e a cabeça desaparecidos em alguma vala da Escócia, onde Guinevere seria enterrada dali a quinze anos, a cerimônia em memória do rei mais querido e controverso da Inglaterra - até aquele momento, é claro - terminou com a rainha subindo ao trono vazio e recolhendo a coroa. A coroa dourada, pesada, encrustada, arranhada, ferida, com sangue. A coroa de rei da Rainha. Guinevere ergueu-a aos céus e a trouxe devagar para a própria cabeça, com as próprias mãos, os próprios arranhões, feridas, sangue, a coroa que ela merecera por cada segundo de trinta anos, não pelos cavalos, mas pela força sideral que carregava, mais pesada do que a coroa, mais dourada do que a coroa. Todos a olharam. Guinevere era agora a jóia mais brilhante de todo o mundo. Ninguém questionou a Rainha do País do Verão e de Toda a Bretanha.

sábado, 27 de março de 2010

A Rainha do País do Verão e de Toda a Bretanha, pt. 2


You had to choose a side at love and divide yourself in two
The way you were, long before you were walking civil war

Durante toda a viagem Lancelote não podia tirar os olhos de Guinevere, e Guinevere retribuiu os olhares já prediposta à traição. O fenômeno de cada história ser diferente dependendo do contador não era mostrado aqui. Todos davam razão à futura rainha. Ela fora aceita por cavalos! Nem fora olhada no rosto! Talvez o rei nem se dignasse a desvirginá-la. Lancelote ainda não era tão assim amigo do rei, embora Guinevere nem sonhasse que um dia se tornariam como irmãos. Se dependesse dela, chegaria ao rei já maculada. Lancelote não aceitou o pedido mudo. E foram muito castos, de mãos dadas, na carruagem. Ninguém contava essa parte da história sem gargalhadas. A Guinevere já odiava a própria vida, você sabe, dinheiro não traz felicidade, e ser rainha também não. Agora a sua vida seria uma carruagem. De novo os cavalos. Ela queria cuspir-lhes as faces mas, ao descer, encarou aqueles olhos vazios e entendeu, ou achou que entendeu - os contadores faziam caras muito misteriosas, não explicavam a súbita compreensão da rainha. Suprimiu o cuspe na boca e, a mão ainda dada a Lancelote, foi encaminhada ao Grande Rei. Os trinta anos que se passaram podiam muito bem ter sido trinta dias ou trinta séculos, porque o espasmo de tédio que se tornaria a vida de Guinevere estava em franca expansão: uma pequena estrela que ia engolindo planetas pequeninos e meteoros ainda menores. E a gravidade crescia. Não que alguém falasse isso na época, mas ela muitas vezes foi comparada a tufões e ondas gigantes. As histórias divergiam porque cada uma contava uma aventura diferente da nossa rainha. Guinevere fumava, costume dos homens; tinha sempre cinzas nos ombros e o que antes eram sardas cor de chocolate agora eram queimaduras doloridas. Guinevere arranjava casamento para suas damas de companhia e acobertava suas traições. E Guinevere traía o rei. Todos os dias Guinevere traía o rei e traía o juramento ao pai. Ela trairia dez vezes por dia se fosse possível, mas Lancelote falhava em coragem. Lancelote amava tanto Guinevere, e amava tanto o rei... Pela primeira vez Guinevere vinha em primeiro lugar para alguém. Mas o Rei Arthur não se importava. Ele amava mais Lancelote do que amava Guinevere. E amava muito Guinevere. O Rei Arthur enchia Guinevere de jóias e vestidos, e contemplava a Rainha do País do Verão e de Toda a Grã-Bretanha com amor nos olhos e reluz na coroa de ouro. A coroa de ouro não ficaria bem em Guinevere, por isso ele jamais a emprestava, e a Rainha, de jóias reais, só tinha gargantilhas. Guinevere não sabia ler e fingia receber com encanto as cartas amorosas de Lancelote. Uma vez, o Arthur, olhe só como ele era um cara prático, resolveu contar a ela tudo que estava escrito. Ele mesmo escrevera. Guinevere rasgou as cartas ali mesmo, na frente do rei! Imagine só a ousadia! Mas não era a única ousadia. Guinevere mandou o rei trocar a bandeira das tropas por uma cruz. O povo amou mais ainda Guinevere. Uma rainha católica e santa é melhor do que qualquer rei. Mas Guinevere não era católica, não era nada. Era imersa em sentimentos silenciosos e debaixo daquela pele clara e daqueles membros frágeis e daquele corpete apertado e daqueles olhos meio violeta e daquelas manchas amareladas entre os dedos e daqueles pés machucados e aqueles joelhos arranhados havia uma fúria que se debatia como o oceano que afundava civilizações inteiras. A fúria ia e vinha em ondas, e não respondia aos movimentos lunares, mas sim à força gravitacional do tédio-estrela de Guinevere, que a essa altura já tinha a magnitude do nosso Sol, e engolia todo o hidrogênio da ponta da Via Láctea para condensar em hélio. Guinevere gostava de montar no cavalo preferido do rei e fazer sexo com Lancelote na cama do rei, por vezes com o rei. Guinevere fazia isso porque não tinha apenas raiva, tinha ódio. Meros cavalos. Ela nada mais era do que o preço a se pagar por cabeças de cavalos. O ódio esterilizara-lhe o útero, mas ela não lamentava, e os homens sempre se chocavam com essa informação, pois na sua cabeça toda mulher quer ter filhos; as mulheres que ouviam a história jamais se chocavam. Arthur não teria seu herdeiro. Lancelote teria. Quando Lancelote se casou, a pedido de Arthur e Guinevere, que precisavam de um herdeiro ao trono e à coroa-de-ouro-que-Guinevere-não-podia-tocar, casou-se com uma moça escolhida e moldada por Guinevere. A futura mãe do futuro rei. Guinevere mandou fazer a ela um vestido e mandou plantar cravos-de-defunto no jardim, para o dia em que a esposa de Lancelote morresse.

sexta-feira, 26 de março de 2010

A Rainha do País do Verão e de Toda a Bretanha, pt. 1

An engine, an engine
Chuffing me off like a Jew
A Jew to Dachau, Auschwitz, Belsen
I began to talk like a Jew
I think I may well be a Jew
Essa história é a mais peculiar, contava-se pela Bretanha em sussurros observados. E toda vez que era contada começava bem assim: essa vai te impressionar! Era a história não de uma rainha que era morta pelo marido, mas de um rei que perdia a cabeça. Assim, literalmente: jugular partida e a cabeça de um lado, o corpo de outro. E pela esposa. Que saiu impune. Peço desculpas por já ter contado o final da história, mas é que os camponeses - e cavaleiros, e cozinheiros, e todos os habitantes da Inglaterra - contavam assim mesmo, o fim e depois os detalhes, que os ouvintes sempre aguardavam avidamente. Pois bem, diziam os contadores da história, era assim. Você sabe o Rei Arthur... e eram imediatamente interrompidos pelos ouvintes, sempre, isso sempre acontecia: não, você não quer dizer que o rei decapitado era o Rei Arthur! Os que sabiam contar histórias só balançavam a cabeça como se tivessem pena da impaciência do seu público. E continuava: escute só, tinha o Rei Arthur. Ele era um rapaz jovem e destinado a ser rei. Bobagem aquilo da espada na pedra. Na verdade a espada do pai dele, que era o rei antes, só foi colocada sobre o caixão, e o Arthur pegou e jurou à mãe sobre a espada que seria um rei tão bom quanto ele. E foi isso. Mas então. O Arthur só podia ser coroado, vocês sabem, se tivesse uma rainha consorte. (Essa história, naturalmente, se perdeu com o tempo nas outras histórias da Grã-Bretanha e do mundo, mas na época todos sabiam que só se podia ser rei com uma rainha consorte, e só se podia ser rainha se se tivesse um marido. Podia-se governar, mas o poder se concentraria nos pais ou irmãos casados. Como isso era fato conhecido por qualquer cidadão ou escravo, era deixado de lado nas narrativas.) Ele procurou em muitos países e recebeu muitas ofertas, porque afinal todo pai queria ser pai da rainha. No fim, aceitou uma oferta de cavalos. Nem olhou para a noiva. É que o Arthur era assim... eu não o conheci (uns raros contadores da história haviam conhecido), mas é o que se diz, meus avós eram do tempo dele, o Arthur era desse jeito: ele era um negociador, e não é à toa, não nos governou por trinta anos? E mandou um amigo ir buscar os cavalos e a noiva. O amigo, é claro, se chamava Lancelote. Essa parte vocês conhecem da lenda (é estranho de se pensar, mas a lenda de Rei Arthur ficou famosa pela traição): lá ele encontrou a Guinevere. Aqui as histórias variavam. Algumas versões falavam de uma mocinha feiosa e irritada; outras, falam que o que lhe faltava em beleza era recompensado em ternura; mas a maioria concordava, e seria verdade mesmo se divergissem, que Guinevere era mesmo uma princesa, era mesmo uma rainha. Que usava os cabelos bonitos e sedosos em tranças e que tinha a pele delicada. Esses são, é claro, os atributos clichê de princesas e rainhas antigas, e Guinevere não era como qualquer clichê. É difícil explicar porque, se você nunca viu uma mulher como ela, não vai entender. Mas tentemos, porque os britânicos tentaram por muitas décadas. Tentemos umas idéias mais exatas. Guinevere não gostava do cheiro de flores; tinha algumas sardas nos ombros, por causa dos vestidos sem mangas que usava no País do Verão; havia rugas na volta dos seus olhos, pois sorria muito; secretamente sofria de uma síndrome que ainda não tinha nome mas nos dias atuais chamamos de síndrome do pânico; era alta e esguia; seus cabelos não eram dourados, mais pareciam ser de prata; e, como carregava a cor do segundo lugar na cabeça, também sempre seria um segundo lugar. Perto de qualquer outra rainha, e todas as histórias concordavam nesse ponto, Guinevere sequer seria notada. Qualquer mocinha bem vestida da corte lhe roubava a atenção e atraía para si todo o interesse. Não fossem os cavalos, Guinevere jamais teria casado com o Grande Rei. Essa era a frase mais popular. Foi um ditado, até, por muitos anos. Lancelote buscou Guinevere e olhou-a nos olhos cinzentos e sem graça e a amou com uma fúria raras vezes vista. Guinevere o amou da forma mais comum possível. Os românticos, e naquela época só sobrevivia à Inglaterra quem fosse muito romântico, gostavam de dizer que era uma ironia ímpar. Lancelote, que era excepcional, e amava excepcionalmente, só recebia da simples e desinteressante Guinevere um amor simples e desinteressante. Mas ele aceitou, o Lancelote. E levou a rainha para o rei com um peso no coração...

 

quinta-feira, 25 de março de 2010

Rapunzel

Eu encontrei uma dama nos campos,
Tão linda... uma jovem fada,
Seu cabelo era longo e seus passos tão leves,
E selvagens eram seus olhos.



Sentada nessa cama. Nessa cama enorme. Um exagero de cama. Trancada nesse quarto, no alto dessa torre. Uma torre muito alta. Um espelho muito grande. Tão grande que é difícil circular pelo quarto sem dar de cara com ele e ele sou sempre eu mesma. Eu olho no espelho, eu me vejo lá mais uma vez. Eu não existo de verdade, eu não existo de verdade, eu não existo de verdade. Eu sou uma fábula. Uma história que se conta para ensinar as meninas o quão valorosa é a sua virgindade. Então, o que eu olho no espelho e vejo, não existe de verdade. Eu nem sei o que estou fazendo aqui, posto que não sou rainha. Ah sim. É porque serei, certo que é esse o destino das princesas. Nunca me disseram objetivamente que sou uma princesa. Ouvi dizer que sou filha de um lavrador qualquer. Mas torre, cabelão, espartilho, espera, tédio. Só posso ser uma princesa! Sou tão princesa quanto as outras e serei tão rainha quanto qualquer outra. Serei, tão logo ele chegue e peça pelas minhas tranças. Got it? Pedir as tranças. E eu jogarei as minhas tranças longuíssimas, nunca cortadas, totalmente imaculadas para que ele suba ao meu quarto. Hã-hã? Pois é. Óbvio assim. Eu, sentada nessa cama, trancada nesse quarto, no alto dessa torre, filha de um camponês e um rabanete, sem ser princesa nem ser nada, esperando alguém escalar minhas tranças virgens. Pelo amor de Deus. Me jogar do alto da torre é uma idéia recorrente, se eu não desconfiasse que meu cabelo enroscaria em alguma planta, me deixando viva, ensanguentada e meio careca. É no meio desse pensamento gore que o sujeito finalmente aparece. Alguma coisa no conto diz que eu estaria cantando lindamente e ele viria seguindo o som da minha voz. Não exatamente. Se qualquer transeunte dos arredores da torre me ouvisse cantar, compreenderia porque Frau Gothel me trancou aqui em cima. O príncipe veio foi atrás do meu som alto. A gente ouve um bocado de Black Metal quando está entediada, deprimida e precisa esfregar os azulejos do banheiro. Ele ouviu e, cabeludinho jogador de RPG e fã de metal que deve ser, veio atrás achando que poderia ser, talvez ,uma baladinha open bar. Ele chega. Pede as tranças. Eu já sei o que devo fazer. Todo mundo nasce sabendo. Olho pela janela. Ele tem um cavalo, não é branco, mas é um animal de porte respeitável. Dizem que as mulheres estão sempre interessadas nesse tipo de coisa, não? Eu jogo a trança. Ele sobe pela trança e, através da trança, chega aos meus aposentos para a nobre missão de me resgatar. Não sem antes receber sua nobre recompensa, evidentemente. Porque não basta subir pelos cabelos virgens de uma moça encarcerada numa torre: você tem que foder com ela também. Quem falou que o mundo é justo? Uma garota faz o que tem que fazer. Não tem muita graça enquanto ele está me libertando. Imagino que ele seja inexperiente ou esteja exausto da escalada capilar. Estou olhando para o espelho o tempo todo. Terminadas as formalidades, o rapaz reclama de sede, eu penso que ele deve estar mesmo exausto da escalada. Ofegante e ainda deslumbrando da virgindade perdidada e da roubada, ele bebe a taça de vinho um gole só. Não era uma taça pequena. Exausto e sem costume de beber, o pobrezinho dormiu depressa, sem ter nem tempo de vestir as ceroulas. Definitivamente terminadas as formalidades, eu abro a porta. Obviamente meu quarto tem porta, uma porta de madeira pesada e nobre. Uma bela porta. Destrancada. Bem como essa torre aqui também tem uma escada e uma outra porta lá embaixo. É estúpido pensar que não e que eu estaria trancada aqui. É uma idéia bem estúpida. Não sei da onde tiram essas idéias. Pois bem, eu abro a porta e me vejo mergulhada em liberdade. O cavalo está lá, esperando por ordens. Percebo que o príncipe deixou sua coroa pendurada no pito da sela, como se aquilo fosse uma moto e ele tivesse parado num posto de gasolina para comprar uma cerveja. Que tipo de idiota faria isso? Coloco a coroa e me torno uma rainha conquistadora. Uma rainha de golpe de estado, de ocupação pacífica, de guerra fria. Uma verdadeira rainha, por direito coroada. Monto no cavalo de pernas abertas, como um homem, e cavalgo em direção ao destino das rainhas. Quanto tempo agora? Quanto tempo até eu perder minha cabeça?


quarta-feira, 24 de março de 2010

It was a murder, but not a crime

Eu sou uma lâmina comprida suspensa por uma corda e unida a um portal de madeira. Meu nome é guilhotina e sirvo à revolução e aos homens como instrumento de tortura. Alguns diriam morte; eu acho que tortura é mais exato e mais bonito. Porque os que chegam a mim só chegam para causar terror nos que ainda estão por vir. Não sei se me faço clara. Sou a corda, a lâmina afiada, a madeira e o cesto onde as cabeças vão parar; também sou o apoio do pescoço do corpo do infeliz. E quantos infelizes já foram? Eu subo e desço em meio a risadas de escárnio. O povo me olha e ri junto: ri porque sou uma estrela! Escolhem uns franceses como marcos da Revolução, mas, francamente - eles só mandam que eu desça, mas quem é que corta jugular e carótida e estraçalha os ossos? C’est moi. E de quem eles lembram mais tarde? Eles os decapitados, é claro. Eu e o cesto, que também sou eu, somos a última coisa que aqueles olhos tristes e condenados vêem. Eu me divirto. Eu me regozijo. Eu desço rápida como um felino e dou um beijo fatal. É muito romântico, eu sou romântica demais para mim mesma. Eu só gostaria de poder andar pelas ruas da França e cantar aos meus súditos, pois é isso que eles são, cantar aos meus súditos cantigas de horror. Mas não posso, e eles vêm até mim. Você sabia, ah, mas eu aposto que não sabia, você sabia que o estado de medo é tal que vizinhos e parentes se acusam mutuamente por medo de virem a mim? Eu me delicio! Eu subo e desço, ritmada, com amor e ternura, e me vêm as cabeças e os aplausos, e no cesto elas sorriem para mim e para o próximo: foi bom para você? Ah! É ótimo! Agora vocês podem até ver. A mim está vindo alguém. Eu vejo a carruagem de madeira se aproximar e me vejo sendo polida. Afiam a minha ponta e eu me inundo de prazer. É uma moça que se aproxima, bem, talvez moça não lhe faça justiça, tem os cabelos bem brancos. Eu a encaro nos olhos nobres e cansados. Pode vir, minha querida, eu vou tratá-la com carinho. Rainha ou plebéia, ninguém passa por mim sem amor - ou com cabeça. Eu me rio e desço depressa. A cabeça no meu cesto é tão bela e triste quanto a que me encarou. Todas elas são. Todas elas são! Ah! Devo estar ficando doida.

terça-feira, 23 de março de 2010

Romanova


 
A revolução tinha cheiro de fruta cítrica. Anos mais tarde esse odor seria engarrafado em vidros coloridos e brilhantes, cada vez mais exóticos; mas por enquanto só a revolução cheirava a fruta cítrica. Combinava com embalagens vermelhas, pois a revolução foi vermelha. Anastasia era muito pequena para saber. A revolução se parecia com os jantares suntuosos que sumiram repentinamente. Ela daria todas as suas bonecas de porcelana por uma laranja ou bergamota. A cor forte de suco que parece que vai atravessar a casca. E suas bonecas de porcelana eram mesmo a única companhia. Os outros irmãos só sabiam chorar o dia inteiro. Anastasia gostava do cheiro de limão que vinha toda vez que as portas do palácio eram abertas e entravam aqueles senhores distintos e sorridentes. Bolshevik soava como um suflê de limão e tinha cheiro de flores. Anastasia era sinestésica. Quando o pai deixou de usar a coroa e foram todos presos num pequeno quarto no fundo do palácio, ela achou que as lágrimas dele se pareciam com os perfumes da avó; ela não sabia, mas o nome era almíscar, e as da mãe cheiravam a patchouli. As crianças também choravam como flores esmagadas. É assim que se faz perfume: água fervida e muitas pétalas espremidas, espremidas até que se tornem restos mortais. Os dias eram tristes na masmorra e logo ela parou de catalogar cheiros. Não era divertido sentir as cores, também; só havia cores de vestidos rasgados e orgulho ferido. E os sons eram doídos, agudos, não havia cheiro que pudesse traduzir aquele terror. O Exército Vermelho não se parecia mais com perfumes franceses, nem a vida mais se assemelhava à penteadeira da Imperatriz, há muito despedaçada e violada. Como qualquer fragrância, Anastasia tinha notas de entrada e de saída; as de saída eram suaves, vinham da Rosa da Bulgária e do cedro da Sicília. Trotsky não pôde deixar de sorrir ao mandar que o sangue fosse limpo das cadeiras.

domingo, 21 de março de 2010

Vida Seca

A primeira rainha do mundo surgiu numa das curvas do Golfo do México. Foi, é claro, sorte comum das rainhas, decapitada; mas não até muitos e muitos anos de governo se passarem. Tinha a pele escura e o cabelo da cor do nanquim. Naturalmente não conhecia nanquim nem kajal, mas a comparação lhe servia com justiça. A primeira rainha do mundo foi escolhida pelo povo. Ficava à frente nas batalhas e era excelente estrategista. A primeira rainha do mundo se comportava como alguém que Maria Antonieta chamaria de selvagem e que revoltaria o estômago das czarinas. E receberia a admiração suprema de todas as mulheres orgulhosas dos nossos tempos. Não se sabe ao certo o nome dela, da primeira. Conta-se entre umas poucas famílias mexicanas, antigas, intocadas pela seca, pelo silêncio e pelo desprezo, que a primeira rainha era muito mais baixa do que a estatura média da tribo, e que isso sempre a favorecia nas batalhas. Que corria mais rápido do que o vento e que se esterilizara tão cedo quanto sua menarca. A primeira rainha pegou em armas e sabia onde achar as melhores frutas para as crianças de seu povo. Então um dia se feriu na guerra. O corte na perna era longilíneo e sangrava todas as noites e todos os dias. E logo não podia mais andar direito. Caía. Nunca antes havia caído. Ralava os joelhos, feria os braços ao buscar apoio. Era uma cena de dar pena. Passou a ficar. nas linhas de trás, gritando comandos. Mas aos poucos a doença drenou também sua voz, e ela passou a sinalizar. Cada um dos membros da rainha foi sendo metaforicamente arrancado, sem qualquer anestesia, pois, mesmo se houvesse alguma à época, julgariam a rainha forte demais para merecê-la. Tão logo a rainha não podia mais indicar as melhores frutas, pois seus braços eram feridos e fracos; seus olhos se tornaram míopes, astigmáticos; a audição, que não era muito boa, antes compensada pela agilidade, passou a ser cobrada. A rainha, que fora a primeira figura de poder de toda a humanidade, agora era a primeira figura de passado. De uma glória hoje finda. A rainha ergueu bem o pescoço comprido e tirou do resto do seu orgulho a força para caminhar. Pensava em como acabar com aquilo. Para o bem do seu povo. Que viesse uma nova rainha, uma mulher forte e cheia de saúde, desempenhar o papel que ela agora descansava sobre a mesa primitiva, com suas plantas primitivas. E sua cabeça rolou pelo chão. Não por vontade própria, pois sua idéia era uma simples renúncia e um recolhimento às margens do rio, onde o Sol abraçaria sua pele escura com amor; o novo estrategista de guerra da tribo não era muito bom, ou talvez fosse um espião, e a primeira medida dos povos inimigos foi livrar-se da incômoda rainha. Teria sido mais correto que lhe arrancassem o coração, selando de outra forma a sorte de todas as mulheres rainhas, princesas ou imperatrizes, que desde lá ficaram assombradas para sempre por um busto sem cabeça; mas as tribos antigas não tinham qualquer noção de anatomia.

sábado, 20 de março de 2010

A Farsa de Inês de Castro

Ah, Inês! Que infeliz o seu destino. Inês foi de todas as rainhas da história a mais amada. Sem dúvida. E nem mesmo foi uma rainha. Essa é a infelicidade de Inês. A não-majestade. Ter sido brutalmente assassinada não foi o maior dos seus infortúnios. Veja, o mundo inteiro é composto inteiramente por gente infeliz. A gente é tão infeliz que isso se torna o padrão. O normal. E Inês ter sofrido uma injustiça e dessangrado não é muito diferente do que se vê por aí. Não a torna mais especial do que as outras. Mas Inês, ah, Inês! Inês deveria ter sido rainha, era bela, era culta, era nobre, tinha o amor do príncipe. Um amor desses que a gente lê muitos livros sobre, todos muito ruins, e inveja quando vê, e diz que não é de verdade, mas à noite chora só ao pensar. Inês fez com que o homem desafiasse pai e mãe e mandasse arrancar corações enquanto ceava. Inês teve seus filhos legitimados. Inês levantou a ira do rei e causou uma guerra. Inês de Castro até se tornou lenda e expressão popular! É muito para uma rainha, é o tipo de coisa que as torna inesquecíveis. E Inês não era uma rainha. É a triste ironia da vida. Inês tinha os olhos ligeiros e os dedos muito compridos; se na época fosse costume manter as unhas pintadas ela as pintaria de vermelho e rir-se-ia ao ser chamada de puta. Não que não tenha sido por não ter as unhas vermelhas. Inês de Castro ganhou alcunha de rainha: Inês a Puta. Inês de Castro gostava de dançar e preferia a Espanha a Portugal. Confidenciou a Pedro que o amor que sentia por ele era mesmo muito grande, para se sujeitar a reinar em Portugal. Portugal era suja e Inês era limpa. Portugal era pequena e Inês era grande. Portugal se sujeitava a infortúnios, Portugal não tinha glória, e o que reservava em comum com Portugal era o que mais doía a Inês a Puta. Só conhecendo Inês para perceber que os olhos cor-de-mel e o cabelo preto escondiam a expressão de desprezo que lhe escapava da boca quando chamavam seu amor de futuro rei. Ah, Inês. É impossível não admirar a sua sorte, e desejá-la aos nossos inimigos. Ganhar o maior amor do mundo e ter o pescoço cortado como o de um porco muito gordo. Só sentar ao trono em forma de cadáver e a sua decomposição emagrecer todos os habitantes do palácio, pois não se podia comer com o fedor de sangue derramado e de amor apodrecido. No fim você conseguiu o que queria, Rainha Inês de Castro e Portugal: não governou a sua pátria detestada, não governou a si mesma. Mas, ah!, agora de nada importa, pois Inês já é morta.



sexta-feira, 19 de março de 2010

Francisca


Não aceito o lugar que reservaram pra mim. Eu não aceito o lugar para onde o dedo de Deus apontou e disse - Eis sua sina, Francisca! Eu finjo que não ouvi o que Ele disse, quando me botou nesse mundo contra a minha vontade. Queria vir não, queria vir não... Eu vim de má vontade, a parteira sentada na barriga, empurrando, empurrando... Até que não teve jeito e eu vim. Eu vim, mas cuspo um escarro grosso de macaca selvagem sobre o destino que aprontaram para mim antes de eu nascer. Minha mãe, preta boa da pele viçosa, nascida sob o Sol da costa da Mina, me dizia no seu Iorubá triste e cantado que a vida seria mais leve se eu aceitasse as coisas como elas vinham. Mas as tais "coisas", essas coisas vieram de modo que eu vim preta, mulher e escrava. Como é que a gente carrega leve o fardo de vir para o mundo para carregar ele nas costas? Nunca fui boa cristã. As negras velhas de engenho e os padres me diziam que o fardo seria suave e que a recompensa seria grande se eu aceitasse as vida como Deus a quisera para mim. Deus me quis preta, mulher e escrava. Que tipo de filho de puta é esse? Nunca fui boa cristã, não senhor! E eu quando eu penso que, sim, teria sido mais fácil me conformar, umas lágrimas vermelhas escorrem no meu rosto negro. Quando a gente morre e ainda tem raiva, as lágrimas calham de serem vermelhas, sei não porque. Morri preta e velha, livre e prestigiosa, rica, muito rica, cheia de filhos que eram uns bons cristãos e belos mestiços. Mas a raiva passou, não. Porque a vida não teve bondade comigo. Eu tive que brigar com a vida a vida inteira. A vida inteira - e foi longa a vida! Uma bela briga de pretas, essa a vida e eu! Nasci preta e morri mais preta ainda, que o Sol dessa terra é bom, mas castiga a gente. Mas a vida - a longa vida! - a vida que eu tive foi de mulher branca. Eu entrei nas igrejas. a cabeça coberta de renda e pés escondidos em sapatos vindos não sei de onde, de longe, do além mar. De onde meu senhor João Fernandes achasse bom me mandar trazer. João Fernandes de Oliveira, o único senhor que eu tive na vida. Nem Deus, que queria que eu fosse preta, escrava e que meus filhos fossem filhos do vento, mortos de alguma doença de índio. Meu senhor é e sempre será João Fernandes de Oliveira, que me viu preta e escrava e compreendeu, não sem alguma argumentação, que estava tratando com uma legítima rainha. Rainha nagô na cor, francesa na luxúria, portuguesa na barriga boa e espanhola nas vontades. Ouvi uma história de uma rainha espanhola que afanou as jóias da coroa e deu para um homem viajar o mar e descobrir essa terra. Penso que ela era uma mulher esperta. Precisei não roubar do meu senhor porque tudo que ele quis de mim eu lhe dei, e ele me foi generoso. Contam que eu mandei cavar um lago em Diamantina e contruir um navio no meu quintal, de modo que eu não morresse sem conhecer uma vaga idéia de mar. Não é mentira. Vai você dizer que eu não merecia? Acabou que as coisas correram bem e eu fui feliz. Não foi uma vida boa, mas eu fui melhor que ela e fui feliz, muito feliz. Nasci escrava e me fiz rainha. E agora você volta algumas linhas e se pergunta sobre a minha raiva. Pensa nas minhas perucas de cabelo natural importadas da França, dos maneirismos de sinhá que eu aprendi, nos meus dentes perolados, no amor de uma vida inteira, um amor tão grande que rainhas coroadas ouviriam histórias e chorariam sua solidão no cantos dos palácios e seus jardins. É que raiva é coisa que nasce com a gente. Fui escrava de corrente no tornozelo e vendida de peito nu na feira e, mesmo assim, me fiz rainha da Diamantina. Cheia de raiva. Eu era melhor que a Diamantina, era melhor que meu doce João Fernandes e que meus filhos saudáveis e cristãos. Eu era melhor que a vida que eu tive. Não te dá raiva isso, sinhá? A mim dá. E muita.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Confecção de Coroas

Antes de tudo aqui se tem um compromisso com a verdade. Eis o compromisso, selado com um anel de ouro e um beijo caloroso na frente do padre: se a verdade é muito bonita, conte; se a verdade é muito feia, torne-a bonita. Então falemos a verdade, que é bonita à sua maneira: Morgana não era rainha nem princesa. Não falamos da Morgana le Fay, ou Fata Morgana, Princesa da Bretanha, que também teve umas verdades meio bonitas, e outras assustadoras. Essa Morgana era uma garota diferente. Onde a beleza entra é fácil de se ver. Aqui há sempre uma queda pelas injustiçadas e via de regra as rainhas e princesas foram injustiçadas, cada uma por um motivo, e todas tiveram um final - e, por vezes, um começo - tétrico. Essa Morgana era plebéia da região mais pobre de Portugal. Trabalhava no campo, e o campo naquela época era triste e cinzento, ainda mais do que os campos de hoje, onde se crê no idílio. As folhas mais bonitas já eram muito amarelas e a comida era escassa; quando havia, era mal-cozida, mal temperada, e não havia gosto em comer. Por isso Morgana era muito magra e muito fraca. Não conseguia correr pelos campos, mal tinha forças para colher as raízes mortas. Então Morgana lia. Claro, à época impressões eram caras, e o único material para se ler sempre era o jornal da coroa, que Morgana não entendia bem, mas sentia que não gostaria, se entendesse. O que Morgana lia eram as estrelas. Quando era muito cedo e o Sol ainda doía nos olhos míopes sem tratamento da moça, tentava procurar os pequenos pontinhos brancos no lábaro azul. Às vezes não conseguia, e sua mãe, com a cadência que só o português luso tem, lhe gritava para parar de olhar tanto para o céu, que seus olhos ficariam cegos. Morgana não discutia, pois a mãe também era fraca, e era dada a desmaios, e seus nervos eram delicados. Então Morgana começava a ler as vozes dos outros camponeses a gritar, lia as reações, lia os passos. Morgana se dedicava, sem saber, a ler a vida. E lia todos os dias, e lia com avidez; e quando chegava a noite lia as estrelas imaginando nelas as faces que lia durante o dia, e aos poucos começou a dar uma nova forma àquelas estrelas, e dar a elas novos sentidos, e descrever-lhes as órbitas, que ela nem sabia bem o que eram . É claro, o compromisso com a verdade não nos permite chamá-la de Rainha Morgana, Princesa Morgana, Imperatriz Morgana, nem de nada. Era só plebéia Morgana. Ninguém Morgana. Nada Morgana. Mas se seu coração não lhe conferia a realeza de cem mil coroas, então nenhuma outra rainha merece o título que tem.

 

quarta-feira, 17 de março de 2010

Palácio da Justiça

Maria que sugeriu que a coroação fosse na Abadia de Westminster. A Abadia era fétida e fria e Maria queria ver a coroa da Rainha da Casa de Tudor refletindo as pedras cinzas. Eu posso perdoar Maria. Fiz questão de presenciar seu próprio enterro, que não foi numa Abadia nem num mausoléu digno. Ou talvez tenha sido, pensando bem; Maria não era mesmo digna. Vejo professores, pois assombro professores, contando anedotas sobre Maria, que influenciava meu marido, que era amiga do Rei. Mas eu era mais que amiga do rei e veja só como hoje me apresento: só tenho cabeça em espírito, porque em espírito não tenho corpo. Eu ainda lembro bem daquela maldita espada fria, da cor dos olhos de Maria. Acho que foi uma vingança pensada. Henrique nunca deixou de gostar de Maria. Nem de Catarina, sejamos sinceros. Ah, eu mesma não gostava de Henrique. O melhor homem da Inglaterra em muito perdia ao pior da França. É que Henrique me proporcionou duas coisas: um, a realeza, e dois, a humilhação de Maria. Persegui Maria até o fim da vida dela. Durou muito, a infeliz. E folgo em dizer que foi infeliz mesmo. Eu pareço uma velha com essas fofocas. Mas é a satisfação post mortem, entendem? Fui destituída do poder de rainha, fui assassinada, fui acusada do que não fiz, e minha irmã, que aconselhou o rei a se desquitar, que aconselhou o rei a pedir a pena de morte, e que sussurrou ao pé do ouvido do rei que eu o traíra, é lembrada como uma dama de bom coração. Eu fui perseguida por toda a minha vida e por isso hoje me dedico a promover o caos em todos os corações infiéis. Infiéis em mim; cabe a Deus se preocupar com os que não o temem. Eu tomo o exemplo de Deus. Quando morri, uma voz torta, vinda da sombra, me disse: Você pertence à Terra, volte para a Terra. Passeei por Londres e por todos os condados. Achei minha irmã. Ah, Maria. Maria chorava muito e não era pela minha cabeça rolando no chão, sendo jogada numa caixa de madeira como se fossem os restos mortais de um animal. Maria estava sendo golpeada pelo marido. Lembro-me de ter visto papai batendo em mim; nunca em Maria, pele macia cheia de manchinhas avermelhadas. E agora o meu querido cunhado enchia de roxos a pele vagabunda de Maria Bolena. Uma morta não precisa esconder seus pecados. Eu sorri. Sou uma assombração sorridente, rio mole, me movo graciosa, tão graciosa quanto ser feita de vapor me permite; eu sempre fui requintada, bela, e não precisava de anáguas para isso. O mundo é cheio dessas imagens poéticas e simbólicas que despertam a curiosidade e a obsessão nas almas mais delicadas: gente sem cabeça, assombrações de torres, corações em punho. Eu explodi em minha alegria ainda não decomposta, sem um único verme a me devorar. Chora, Maria. Gritei Chora, Maria em seus ouvidos até o dia em que morreu. E morreu chorando. Nunca uma lágrima foi derramada por mim, mas quero o crédito que mereço por muitas dessas lágrimas. Eu nunca tive o que merecia. Mil dias. O que são mil dias? Estou morta há quinhentos anos! Meu irmão por vezes me segue na Torre. Ele gosta das minhas histórias sobre Maria e Joana. Não guardo rancor de Joana. Só pioro as histórias sobre Maria. Conto dos cabelos engrenhados e de sua estupidez submissa - Maria achava mesmo que devia obedecer por ser mulher - enquanto os sinos batem, e minha voz morta ecoa por toda a Londres, viajando junto com o vento, esfriando as cervejas quentes e arrepiando as espinhas dos infiéis. Conto as histórias e meu irmão ri, ri alto, seu espírito sem corpo balançando com as badaladas, e não contenho eu mesma o riso ao ver os infiéis fazendo o sinal da cruz. Depois nos damos as mãos e saímos a cantar: Chora, Maria, chora, Maria... Daqui até o túmulo de Catarina, o único lugar onde consigo descansar em paz.

 
template by suckmylolly.com