quarta-feira, 21 de abril de 2010

Gotas de sangue


Às vezes eu sinto falta da minha cabeça. Acho que as outras também sentem. Mas é que elas estão mortas mesmo e tudo o que dizem não passa de uma ilusão patética. Eu estou bem viva. E sem cabeça. E com sede, como vocês já sabem. Ah, eu suspiro. Eu sinto falta do meu crânio delicado, meu nariz fino, meus lábios cor-de-rosa. Eu sinto falta principalmente do sentido do olfato. Meu nariz era muito bonito. Às vezes me ocorre o que devem ter feito com minha cabeça. Será que enterraram? Queimaram? Sei que mantiveram minha coroa. Eu sinto falta dela. Sinto falta do cheiro, do brilho... eu não sinto falta de estar viva, o que é curioso. Só sinto falta das coisas que faziam estar viva - e ser Rainha, deus sabe que ser rainha é difícil - valer a pena...

 
Se a guilhotina doeu? Deixar a Áustria naquela fronteira fria e azeda foi muito pior. A França não é acolhedora. Não a princípio. Não quando se é tão moça... Paris, sim; mas a França, o resto, aquela paisagem agreste e fúnebre, vazia. Eu fiquei aterrorizada. A minha casa tão alegre, com aquele sotaque tão nosso, com o calor dos meus compatriotas e irmãos; e me encontrei numa terra onde a rainha era vestida pelas servas e onde vi poucos sorrisos ao longo de todos os anos. Eu morri cedo, mal tinha saído da adolescência; e quando cheguei lá era uma criancinha perdida. Não é por menos que fiz tantas festas! Eu tinha tanto medo, ah, minhas queridas, meus queridos, mesmo quando ganhei uma terra só minha foi naquela terra áspera e fria da França. Eu teria sido uma rainha melhor para o povo se me instalasse em Paris e nas suas luzes coloridas.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

L'amour

 Meu nome é Mayra e eu não sou rainha. Aliás, não era. Quando elas me convidaram para esse palácio estranho feito de nada acho que me tornaram uma delas. Não se preocupem, minha cabeça está muito firme sobre os ombros e o pescoço comprido. Elas aliás gostam muito da minha cabeça: tenho o rosto fino e acho que tenho mesmo cara de rainha. Elas seguidamente me dizem isso e eu agradeço e ouço e anoto. Minhas mãos já estão com calos por causa das canetas. Eu anoto tudo que elas dizem e tenho reproduzido fielmente. Elas mentem muito, e eu também. Mas me pediram que não falasse delas por enquanto, que falasse de mim mesma. Eu não sirvo para falar de mim mesma; escrever talvez; mas elas queriam que eu só falasse e dessa vez quem anotaria seriam elas. Quem segura as canetas é Maria Antonieta, ela mesma se oferece, retribuindo o favor. Eu vejo o papel se rasgar por baixo da ponteira. Ah! Certo! Eu. Eu fumo, tenho bom coração, tenho um caráter talvez duvidoso, tenho tatuagens — elas aliás são fascinadas por tatuagens, passam os dedos mortos pelas minhas com encanto — e escrevo. Talvez essa seja a característica mais importante. Não sei o que elas querem que eu diga. Não sei o que o mundo quer que eu diga, só sei o que eu quero dizer — e digo. Mas confrontada assim, nessas perguntas a queima-roupa, e com as minhas rainhas de testemunha? Eu às vezes tenho medo de que elas me ponham pra fora. Mas não vão, porque nos damos muito bem. E não é medo porque os tapetes daqui são tão mais bonitos — no meu quarto colocaram um bem felpudo com estampa de zebra, veja só que amor — e as cortinas tão mais bonitas e os vestidos e sapatos e roupas e vozes e histórias. Eu me sinto uma delas. Eu sempre me senti uma rainha coroada e minhas tatuagens, quase todas, se não são explicitamente coroas, têm alguma realeza implícita. É tão a minha cara, não duvido que vocês já tenham notado. Eu sou do tipo que tem coroas e corações tatuados e não sei me perdoar quando não me faço jus. O mundo pode me perdoar, mas vou contar às minhas rainhas um segredo: eu não sou o mundo. Eu não sei o que sou, mas não funciono como o mundo. Talvez eu só seja uma rainha. É, respondo para mim mesma, entre uma tragada e outra, olhando pensativa; eu sou uma Rainha.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Cinco de Novembro ou Bizarre Love Triangle

I see no reason
Why the Gunpowder Treason
Should ever be forgot
Tu sobe e desce cada vez mais rápido nesse homem e ele arranha as tuas costas. É uma cena que eu vejo todos os dias. Tu és uma piada, Isabel. Tu és uma piada e eu te amo tanto que me frustra. Tu te viras e agora o homem está em cima de ti e ele se movimenta com força, dá para ver que gostas pelo jeito que gemes. É vergonhoso, Isabel. Se eu não fosse uma massa de terra dividida em pequenos territórios, descansaria a cabeça numa das mãos. Mas eu sou uma massa de terra dividida em pequenos territórios e tu juraste amar apenas a mim! Não que eu seja ingênua e ache que tu estás amando este homem, embora sem dúvida sinta algum prazer. Ah, Isabel, eu não sei por que mentes para o povo. Eu sou mais velha do que tu e entendo melhor esta terra, até porque eu sou esta terra. Essa gente não se convence fácil assim. Quer tu prometas amor eterno a mim e apenas a mim, quer tu prometas amor aos raios que a partam, eles vão achar tudo muito ruim. Tua mãe morreu por menos que isso, tu sabes. Eu queria que tu me amasses mais. Tu passas tempo demais com esses homens. E com essas mulheres. É duro, tu não imaginas. Tu te sentas no trono com a tua coroa, ela ficava melhor na tua mãe aliás, e juras amor a mim, e fazes o teu trabalho, mas e eu, Isabel? Eu não posso lidar com isso. Tu só me amas aos olhos do público. É difícil. Essa coisa de rainha virgem porque casou com a Inglaterra. O nosso casamento muito me frustra, muito me decepciona. Eu há muito deixei de ter orgulho, Isabel. Eu me humilho na tua frente e eu nunca me humilhei ou subordinei a ninguém antes. Tu não responde aos meus terremotos, à minha frieza, e também não responde aos tempos de Sol, nem às colheitas fartas. Tudo isso sou eu, Isabel. Eu pedindo a tua atenção e tu, nada. Tu mal me olhas. Tu nem deves saber algo de mim. Porra, Isabel. Tu me fazes pensar em ti o dia inteiro, tu me fazes estudar cada movimento, tu me juras amor - e eu acredito! - e finges que vai cumprir as tuas promessas... eu queria ter dois braços e uma cabeça e descansá-la tristemente sobre ambos. Não é isso que tu fazes? Devias pensar na tua mãe. Ela não pode mais fazer isso. Nem eu. Eu até tento te assustar com esse papo de não ter cabeça, de assombração. Tu não me escutas. E queres saber? Eu acho que tu nem acreditas em mim. Às vezes eu bem que queria que tu tivesses um rei e não desses a ele um filho homem. Tu me machucas, Isabel, e eu nem consigo ou posso retribuir como mereces. Que falta me faz um bom machado! Enquanto isso tu te deitas e te levantas e me juras e me mentes e eu sofro calada, Isabel. Até a tua mãe teve mais voz. God save the queen! Mas se eu fosse Deus e não uma pequena ilha com territórios forçosamente anexados Deus te faria em pedaços, sem nem te dar a mística de ser uma rainha sem cabeça.


Every time I see you falling I get down on my knees and pray...

domingo, 4 de abril de 2010






Um homem sempre perdoa os pecados de outro homem. Mas os pecados de uma mulher... Bem, pense em Eva e o assunto se encerra. Não me importa. Eu penso nos homens que me condenaram: Danton, Robespierre, Marat, Guillotin. Homens de boas intenções. Monsieur Guillotin pensava num modo rápido e indolor de cumprir com a justiça, havia genuína bondade nesse intento e genuína tolice. Os outros três, imagino que tudo que desejavam construir era um mundo onde a fome do povo não alimentasse os diamantes no pescoço de uma rainha decorativa. Homens de boas intenções, cujos assassínios, incoerências, traições e erros não apenas foram perdoados, como foram amigavelmente esquecidos pelos livros de História - obviamente escritos por outros homens, cuja natureza das vontades ou intenções eu desconheço e não despertam meu interesse. Meus devotados homens de boas intenções entraram para a História desse mundo como visionários revolucionários e se agradece a eles pelas infinitas possibilidades que sua revolta popularesca proporcionou ao mundo dos homens. Quando se pode matar a monarquia, o céu é o maldito limite. E entrando para os livros, eles grantiram neles o meu lugar. A morte do rei e da rainha da França, ligeiramente vergonhosas e coisa de que não se deve falar muito nos corredores da Sorbonne, dano colateral da maior, melhor e mais eficiente revolução que o mundo conheceu. Eu, educada na religão católica apostólica romana dos meus pais e dos pais deles, penso nos meus pecados. Pecados nunca esquecidos, nunca perdoados. A rainha dos diamantes, a rainha das festas, a rainha cercada de gente jovem e alegre, a rainha do 'comam brioches'. Pecados de cultura pop, pecados de cinema. Os homens de boas intenções que nunca colocaram nos autos do meu julgamento que a arquiduquesinha da Áustria, apertada nos seus espartilhos, ansiosa por um bom banho e cansada de uma longa viagem, nunca teve uma escolha. Nunca conheceu outra vida. Nunca soube mais do que latim e jardinagem e que aos pobres se deve amar, sorrir, estender as mãos alvas e dar algum pão. Uma rainha deve ser esposa e mãe, foi como me ensinaram e como eu aprendi, a despeito de gostar um bocado de festas. Paris é uma festa! Louis não fazia tipo festivo, mas não se importava que eu fosse jovem e alegre enquanto era tempo de ser jovem e alegre. Tive tão pouco tempo! Obrigada, Louis! Eu amei meu tímido Louis e Louis me amou, porque foi assim que nos ensinaram. Era fácil amar Louis, tímido e servil, talvez um pouco tolo, amante de corridas de cavalos e banquetes suntuosos, criado solitário entre amantes do rei, efeminados e homens de armas, imensamente sedento de amor e atenção. Penso que deva ter sido difícil para ele amar uma arquiduquesa de raízes bárbaras, arredia, a pele ainda ruim de adolescente, um tanto mais alta, vaidosa, voluntariosa, amiga de militares, damas de fama duvidosa, frequentadora de óperas e festas até o amanhecer. Obrigada, Louis, meu pobre rei descoroado e decapitado, obrigada! O rei da França foi perdoado pelo tempo. Teria sido completamente esquecido, se não tivesse sua imagem constantemente associada à minha e eu lhe peço perdão por isso. É estranho pedir perdão por ter sido boa no papel que nasci para desempenhar: Rainha. Fui uma boa rainha numa época em que rainhas estavam fora de moda. Posto isso, teria sido justo ter entrado para seus livros como uma rainha corajosa. Uma rainha fora de época, a rainha que fecharia para sempre a porta das rainhas de sonho, doces confeitados e brioches. Eu fui corajosa. A última e corajosa rainha-consorte de contos de fada numa época de homens, máquinas de fumaça e vapor e revoluções armadas. Meus amados homens de boa vontade e armas. Eu os recebo no círculo do Inferno reservado aos de boa vontade, eles me olham com surpresa, eu beijo suas testas, eles se curvam aos meus pés. Se não havia espaço no mundo para tanta boa vontade, pois haverá no inferno dos que foram emboscados, traídos, decepados. Eles concordam e me reverenciam com suas cabeças deslocadas do corpo. Eu os convido ao meu Petit Trianon. Eles se sentam ao meu redor, pernas cruzadas como meninos e perguntam curiosos sobre Louis. Nunca mais, meus senhores, nunca mais. Talvez lhe faltasse a vontade inflamada que em nós sobra e vaza pelas artérias expostas de nossos pescoços. Deve haver um outro inferno para os reis doces e passívos. Eles concordam. Casualmente, enquanto comem, confessam outros tempos que teriam me amado e me seguido com máquinas que disparam luzes. Sim, eu lhes digo sem uma ponta de amargura, hoje, época farta de brioches e revoluções, eu teria sido amada, tão amada, com tanta devoção e intensidade, que talvez essa necessidade de mim terminaria por me encurralar entre os ferros retorcidos de uma carruagem e o muro de um túnel, a cabeça esmagada, longe do meu rei, perto de traidores e carrascos, as luzes piscando para mim, na noite bela Paris. Paris, Paris, Paris, que é sempre uma festa!


Maria Antonieta da Áustria e da Lorena, trinta e oito anos, viúva do rei da França.

sábado, 3 de abril de 2010

América, Europa e um continente à escolha



O problema dos historiadores, pensa o fantasma da Princesa do Brasil, é que eles gostam exatamente daquilo que eu mais desprezo: o pó! Eu não queria nem sequer o pó daquela terra e aquela terra está cheia de gente querendo o meu pó. Carlota rendeu mesmo muito pó quando morreu; quis ser enterrada com uma coleção de sapatos, fato que a família ocultou por benevolência, e porque já tinham laços com loucos o suficiente; Maria de Bragança e Portugal era, afinal, a sogra de Carlota Joaquina. Que não queria nem o pó do Brasil, nem o de Portugal: menos ainda da França, e tinha Bourbon por duas vezes no sangue! Os historiadores, que são aliás uns fofoqueiros, uns podres, só queriam saber do pó de Carlota, deixem meu pó em paz! Não escavem minha sepultura. Era um tédio ser princesa do Brasil porque o Brasil não era propício para princesas. Era terra de gente gentia, suja, reclamona. Uns infelizes que só queriam saber de problemas sociais. Ninguém queria falar em casamento e tecidos novos. Menos ainda de sapatos. Não que eu fosse fútil assim. Carlota não era fútil, entendia muito dos problemas dos escravos e das infelicidades dos pobres, mas também me achava pobre! Pobre de espírito, veja que Carlota Joaquina, por ser mulher, não tinha voz na corte nem em lugar algum. Ela era um enfeite e se eu não me acostumasse a ser um enfeite o que seria da minha vida? Mas fui muito rebelde; Carlota sem dúvida deu muito trabalho, preocupou muitas cabeças, e mesmo assim saiu com a dela bem coladinha ao pescoço. Se não fosse um enfeite talvez pudesse ver aquela história dos pretos, porque eram mesmo muito tristes aqueles pobres pretos. Carlota Joaquina era uma das poucas soberanas que não eram racistas; mas, pensando bem, eu nem sequer era uma soberana. Princesa do Brasil. Bem certo que fui Rainha de Portugal um pouco, por pouco tempo, e fiz poucas coisas, umas traições, uns trâmites, causei lá alguns problemas; mas Portugal tem o tamanho do meu sapato e a sola do meu pé mede vinte e três centímetros, aliás media, porque Carlota está morta. E o Brasil muito devia a ela, muito devia a mim, porque veja, o Brasil era imenso, ainda é, está maior agora porque tem mais terra, e toda aquela terra devia ter ficado sob o meu comando e teríamos feito maravilhas, mas não me deixaram! Não podia mandar neles e não podia desmandar; no primeiro eu seria fútil, no segundo ela seria insuficiente. Se eu bebia muito era feio, e se não fazia nada eu não era nada também. E eu não podia ser nada, mesmo que o Brasil me tenha negado. Pois eu nego o Brasil também! Desta terra continuo não querendo nem o pó. Nesta terra quero que tudo se exploda e vire tão pó quanto eu! Brasil, Portugal, Espanha, França, todos os lugares que me negaram. Neguem Carlota Joaquina na morte! Eu espero só que a guerra destrua cada centímetro desse amontoado de lixo até ficar do tamanho da sola do meu pé e eu possa pisar nas gerações de reis e rainhas e príncipes e princesas que não me deixaram fazer nada.

 
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