domingo, 20 de março de 2011

Don't You

Isabel querida,
Acho hoje de péssimo gosto a inscrição que James nos dedicou. Não apenas por nossas religiões, que não permitem a idéia de uma ressurreição; aprendi, como creio que a esta altura o seu corpo que apodrece ao meu lado também tenha aprendido, que não há nenhuma dessas coisas, nem deus, nem nada. A gente tem tanto tempo pra pensar quando se está morta — você há de ver, Isabel querida —, e depois de quase quarenta e cinco anos morta eu fiz a mesma reflexão que seu sucessor fez ao inscrever no nosso túmulo: aqui descansam duas irmãs, Maria e Isabel, na esperança de uma ressurreição. Isabel, nós somos a história repetida uma da outra, a história repetida das nossas mães, e se nos uníssemos cometeríamos os mesmos erros, pois é o que fizemos durante todo esse tempo — eu enquanto via aquelas mulheres horrorosas, com o devido respeito à Senhora Anne e uma exceção feita a Katherine Parr, sucederem minha mãe, eu enquanto esperava pela morte de Eduardo, eu enquanto aguardava com paciência a execução da rainha fajuta que tomou o seu lugar, eu naqueles anos, naquelas mortes todas — eu assinando cada morte, eu sorrindo para aquela alcunha irônica, Maria Sangrenta, Maria Sangrenta, Maria Sangrenta — eu perdendo filhos que nem existiam de verdade, eu me enganando com uma gravidez que nada mais era que um enorme câncer corroendo meu corpo como o que corroeu o de minha mãe. Eu perdendo para você, Isabel. Você, que morreu invicta. Entende o péssimo gosto? A ironia cruel? Nós não precisamos nos unir, Isabel meu bem, Isabel minha querida, ruiva e brilhante irmã, porque nós fomos as mesmas desde o início dos tempos. Se eu tivesse tido alguns anos. Uns poucos, Isabel, poucos anos, o suficiente para ter um filho, para arranjar uma maneira de burlar o testamento de Henrique que apontava você como a última na linha de sucessão, Isabel, as coisas teriam sido diferentes — e depois, ah, depois elas teriam sido iguais, porque assim haveria de ser, Isabel. Nós haveríamos de morrer a mesma pessoa.




Com amor e um voto genuíno de boas vindas,
Maria Primeira da Inglaterra

I'll put us back together at heart, babe

Tainted Love

Maria querida,
Acho que quando se é rainha nunca se pode de fato insultar qualquer pessoa, apenas ser violentamente perseguida, e por isso sinto que se há um destinatário capaz de compreender meus sentimentos esse destinatário é você. Hoje, Maria querida, eu penso em nós duas com amargura. Nossas histórias são tão parecidas que deveríamos ter nos unido como as irmãs que de certa maneira somos. Ambas sabemos, e espero que você me perdoe como eu a perdôo, que no entanto isso jamais seria possível, pois a própria semelhança nas histórias talvez seja responsável pela fome que carregávamos.
Não sei se alguma vez você de fato observou a Torre de Londres. Conta-se que, na primeira vez em que entrei lá, fui tomada por um pânico sobrenatural, dado o destino de minha mãe lá mesmo. Não é inteiramente mentira, nem portanto inteiramente verdade. Quando entrei na Torre de Londres eu acreditei que nunca mais ia sair de lá, e acreditei com tanta força que para mim era como se fosse fato consumado, entrei pronta para ficar até a morte. Digo isso porque naquele dia descobri que todos os meus instintos viriam sempre a dar errado, e por isso construí um reinado que, veja a coincidência, foi mais longo que a sua vida inteira.
Quando nos vimos, Maria, eu tive o instinto certeiro, a noção imediata, de que nos tornaríamos companheiras. Que a traição que nosso pai nos fez — podemos eternamente discordar quanto a melhor rainha da geração anterior, mas conto com a sua crença de que um filho dos Seymour não é digno do trono — nos teria moldado para uma amizade que perduraria. Que nos tornaríamos ambas rainhas juntas, que sentaríamos nas duas cadeiras de rei, que carregaríamos coroas e decisões na mesma época; que a era de uma não haveria de suceder a era da outra. O que eu ainda não sabia é que nosso pai nos despertaria tanto ódio. Mas não quero terminar esta carta com amargura. Fala-se muito de ódio e raiva entre as mulheres e não pense que sou suficientemente ingênua para crer que não é verdade que somos mais inclinadas a esses sentimentos do que os homens; não quero discuti-los com você, no entanto, porque em vida sentimos o suficiente, e porque não quero basear o meu amor pela sua memória em nada que nos assemelhe uma à outra. Maria querida, em outra época teríamos sido mais do que irmãs; em outra época teríamos sido consortes. Construí sozinha uma era de ouro. Pergunto-me agora no leito de morte, tantas eras depois do seu, como seria uma era reinada por nós duas.



 Com amor,
Rainha Isabel Primeira da Inglaterra


Oh baby baby, where did our love go?

 
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