quarta-feira, 20 de julho de 2011

Coração de Leão

Nos últimos dias de vida de Maria da Escócia foi anunciada a visita da Rainha Regente Isabel Primeira. Naqueles últimos dias frios, pois a execução se deu no início do outono, os ossos de Maria rangiam alto conforme se movia pelo quarto pequeno. Foi esse som que deu boas vindas à Rainha. Isabel por sua vez tinha os ossos fortes, herança não se sabe de onde, porque o frio haveria de tê-los deteriorado com o passar dos anos. Quando Isabel parou em frente a Maria, tantas coisas passaram por sua cabeça; com o passar dos anos seus ossos ficavam mais firmes e sua mente, mais acostumada ao fluxo intenso de pensamentos. Décadas atrás seu pai havia parado em frente a sua mãe, exatamente como ela agora encarava os olhos azuis de Maria. A vida, tornou a formular Isabel em sua cabeça, a vida é mesmo um fluxo interminável de ironias. Maria começou a falar sobre sua vida; como não haveria de pedir perdão por seus atos. E Isabel silenciou-a com um dedo. Era tão óbvio nos olhos de Maria que ela não compreendia coisa alguma, que tinha o coração e a mente em mundos opostos, que pouco sabia das coisas que Isabel sabia — mas também estava óbvio nos olhos de Isabel que Maria era mulher de melhor sorte e, ainda que falhasse como rainha, era por terem nascido em épocas erradas. Isabel encostou o dedo no lábio de Maria e disse baixinho que sua vida era uma seqüência interminável de boas pessoas enviadas por Deus nos piores momentos, e que seu fardo era vê-las todas indo embora, indo embora às vezes por seus próprios meios. Doía-lhe matar outra rainha, rainha como ela, que havia passado por tudo que ela também havia vivido, ainda que com casamento; talvez por isso mesmo tão rainha quanto ela, que fugira do matrimônio mas enfrentara o país e os anos. No entanto... a coroa era sua. Então Maria se ergueu e tornou a se abaixar, ajoelhada com a cabeça sobre as pernas de Isabel, e as duas entrelaçaram os dedos, e as duas sabiam que naquele dia Isabel escreveria Elizabeth Regina na sentença de morte de Maria, e que cortariam o pescoço de Maria e Isabel guardaria sua cruz de ouro como lembrança. Mas, durante longos minutos, o que lhes importava era apenas que suas mãos estavam dadas e que o fim, ainda que tardiamente, estava próximo. O fim, que era o começo.



Mais tarde naquele dia, Isabel sentiu-se irremediável e terrivelmente sozinha.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Tightrope


 Essa rainha em especial não tem quem escreva por ela. A corte, as damas de companhia, a cavalaria, os cavaleiros, os serventes. Ninguém que escreva por ela, que lhe dê uma face poética, que a represente com uma pintura grandiosa que um dia será trancafiada num museu que ninguém visita. No entanto a isso a rainha dirige um semblante de indiferença e um suspiro; sempre seus suspiros. Vai morrer com os pulmões limpos porém sempre virtualmente inúteis, ainda que não saiba. É como se respirasse com outros órgãos. Aquela metáfora velha e gasta de respirar com o coração mas talvez, caso alguém escrevesse por ela, se pensasse em dizer que na realidade a rainha respira através da coroa, uma inspiração e expiração extra-corpóreas, e pela própria distância entre seus órgãos e a coroa mais difícil, lenta, trabalhosa, ansiosa, debilitada. Muitas metáforas são possíveis quando você tem quem escreva por você: alguém dotado de criatividade e bom pulso poderia falar sobre os espelhos do quarto, como mostravam diversos ângulos da rainha, por isso mesmo todos questionáveis, mas quem entrasse no quarto via os espelhos e os reflexos e os deflexos, de modo a nunca saber exatamente como eram os olhos da rainha ou as maçãs do rosto da rainha; alguém dotado de criatividade e bom pulso poderia falar da voz da rainha, sobre como sempre parecia ressoar no quarto mesmo quando ela mantinha os lábios bem juntos um do outro; alguém dotado de bons olhos e pulso firme poderia desenhar a rainha, a baixa estatura, os cabelos cheios, as tintas, as cores. No entanto a rainha, e isso é de autoria própria, sem que ninguém lhe possa distorcer a voz ou os modos, não quer saber de retratos e biografias que não sejam de próprio punho. Às vezes, quase sempre, pra ser rainha, a gente tem que ser sozinha. Se esse fardo e o de ser malvisto, incompreendido, por fim detestado, cabem a todos os seres humanos, o que resta para a rainha regente apontada e coroada? Ela sentou-se muito reta na cama macia e seus olhos se demoraram no espelho do extremo oposto do quarto, o único quebrado. A imagem perfeitamente refletida, a despeito de todas as leis da óptica que impediam essa impressão, lhe devolveu uma expressão de soberania que ela mesma não exibia. Mas entendeu o recado. E sorriu de volta.

sábado, 7 de maio de 2011

Uma rainha que bem podia ter sido publicada aqui

domingo, 20 de março de 2011

Don't You

Isabel querida,
Acho hoje de péssimo gosto a inscrição que James nos dedicou. Não apenas por nossas religiões, que não permitem a idéia de uma ressurreição; aprendi, como creio que a esta altura o seu corpo que apodrece ao meu lado também tenha aprendido, que não há nenhuma dessas coisas, nem deus, nem nada. A gente tem tanto tempo pra pensar quando se está morta — você há de ver, Isabel querida —, e depois de quase quarenta e cinco anos morta eu fiz a mesma reflexão que seu sucessor fez ao inscrever no nosso túmulo: aqui descansam duas irmãs, Maria e Isabel, na esperança de uma ressurreição. Isabel, nós somos a história repetida uma da outra, a história repetida das nossas mães, e se nos uníssemos cometeríamos os mesmos erros, pois é o que fizemos durante todo esse tempo — eu enquanto via aquelas mulheres horrorosas, com o devido respeito à Senhora Anne e uma exceção feita a Katherine Parr, sucederem minha mãe, eu enquanto esperava pela morte de Eduardo, eu enquanto aguardava com paciência a execução da rainha fajuta que tomou o seu lugar, eu naqueles anos, naquelas mortes todas — eu assinando cada morte, eu sorrindo para aquela alcunha irônica, Maria Sangrenta, Maria Sangrenta, Maria Sangrenta — eu perdendo filhos que nem existiam de verdade, eu me enganando com uma gravidez que nada mais era que um enorme câncer corroendo meu corpo como o que corroeu o de minha mãe. Eu perdendo para você, Isabel. Você, que morreu invicta. Entende o péssimo gosto? A ironia cruel? Nós não precisamos nos unir, Isabel meu bem, Isabel minha querida, ruiva e brilhante irmã, porque nós fomos as mesmas desde o início dos tempos. Se eu tivesse tido alguns anos. Uns poucos, Isabel, poucos anos, o suficiente para ter um filho, para arranjar uma maneira de burlar o testamento de Henrique que apontava você como a última na linha de sucessão, Isabel, as coisas teriam sido diferentes — e depois, ah, depois elas teriam sido iguais, porque assim haveria de ser, Isabel. Nós haveríamos de morrer a mesma pessoa.




Com amor e um voto genuíno de boas vindas,
Maria Primeira da Inglaterra

I'll put us back together at heart, babe

Tainted Love

Maria querida,
Acho que quando se é rainha nunca se pode de fato insultar qualquer pessoa, apenas ser violentamente perseguida, e por isso sinto que se há um destinatário capaz de compreender meus sentimentos esse destinatário é você. Hoje, Maria querida, eu penso em nós duas com amargura. Nossas histórias são tão parecidas que deveríamos ter nos unido como as irmãs que de certa maneira somos. Ambas sabemos, e espero que você me perdoe como eu a perdôo, que no entanto isso jamais seria possível, pois a própria semelhança nas histórias talvez seja responsável pela fome que carregávamos.
Não sei se alguma vez você de fato observou a Torre de Londres. Conta-se que, na primeira vez em que entrei lá, fui tomada por um pânico sobrenatural, dado o destino de minha mãe lá mesmo. Não é inteiramente mentira, nem portanto inteiramente verdade. Quando entrei na Torre de Londres eu acreditei que nunca mais ia sair de lá, e acreditei com tanta força que para mim era como se fosse fato consumado, entrei pronta para ficar até a morte. Digo isso porque naquele dia descobri que todos os meus instintos viriam sempre a dar errado, e por isso construí um reinado que, veja a coincidência, foi mais longo que a sua vida inteira.
Quando nos vimos, Maria, eu tive o instinto certeiro, a noção imediata, de que nos tornaríamos companheiras. Que a traição que nosso pai nos fez — podemos eternamente discordar quanto a melhor rainha da geração anterior, mas conto com a sua crença de que um filho dos Seymour não é digno do trono — nos teria moldado para uma amizade que perduraria. Que nos tornaríamos ambas rainhas juntas, que sentaríamos nas duas cadeiras de rei, que carregaríamos coroas e decisões na mesma época; que a era de uma não haveria de suceder a era da outra. O que eu ainda não sabia é que nosso pai nos despertaria tanto ódio. Mas não quero terminar esta carta com amargura. Fala-se muito de ódio e raiva entre as mulheres e não pense que sou suficientemente ingênua para crer que não é verdade que somos mais inclinadas a esses sentimentos do que os homens; não quero discuti-los com você, no entanto, porque em vida sentimos o suficiente, e porque não quero basear o meu amor pela sua memória em nada que nos assemelhe uma à outra. Maria querida, em outra época teríamos sido mais do que irmãs; em outra época teríamos sido consortes. Construí sozinha uma era de ouro. Pergunto-me agora no leito de morte, tantas eras depois do seu, como seria uma era reinada por nós duas.



 Com amor,
Rainha Isabel Primeira da Inglaterra


Oh baby baby, where did our love go?

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Criatura da noite

Ser rainha é tão mortalmente cansativo que não posso nem tentar começar a entender por que alguém viria a querer ser uma. Ser rainha, meus amores, minhas lindas, lamentavelmente não é escolha; sei que não escolhi, nasci rainha e nasci o pior tipo, o mais odiado, o mais colorido, o mais venenoso. Sabe que acho mesmo que quanto mais a gente sofre menos a gente entende? Então. Não entendo quem corre atrás da realeza. Ou você nasce rainha ou nasce pra ser rainha; outro jeito não tem, não adianta tentar, linda.

Eu nasci rainha, como já disse. A coisa se mostrou óbvia desde que eu era muito criança: não porque roubasse as maquiagens da minha mãe ou usasse os saltos dela, era algo próprio e que creio estar na minha pele, até hoje vejo nela, reluzente, a expressão clara de uma rainha: você viu isso nas maiores e vê em mim também. Depois, claro, vieram os saltos e as meias, que prefiro arrastão vermelha, trama grande; queria dizer que é por algum motivo filosófico do tipo nada me prende mas tudo me prende, mas prefiro arrastão vermelha da trama grande porque acho um tesão e tudo que faço nessa vida, meu amor, é expor a minha condição de rainha com o máximo possível de tesão. A minha cabeça quando for cortada — e há de ser cortada, toda sorte de navalha já passou pelo meu pescoço e falta nada pro corte da vez ser fatal — vai ter que ser cortada com elegância e com tesão. Por menos que isso eu não me dou o trabalho, não vale o meu suor.

 
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