Nos últimos dias de vida de Maria da Escócia foi anunciada a visita da Rainha Regente Isabel Primeira. Naqueles últimos dias frios, pois a execução se deu no início do outono, os ossos de Maria rangiam alto conforme se movia pelo quarto pequeno. Foi esse som que deu boas vindas à Rainha. Isabel por sua vez tinha os ossos fortes, herança não se sabe de onde, porque o frio haveria de tê-los deteriorado com o passar dos anos. Quando Isabel parou em frente a Maria, tantas coisas passaram por sua cabeça; com o passar dos anos seus ossos ficavam mais firmes e sua mente, mais acostumada ao fluxo intenso de pensamentos. Décadas atrás seu pai havia parado em frente a sua mãe, exatamente como ela agora encarava os olhos azuis de Maria. A vida, tornou a formular Isabel em sua cabeça, a vida é mesmo um fluxo interminável de ironias. Maria começou a falar sobre sua vida; como não haveria de pedir perdão por seus atos. E Isabel silenciou-a com um dedo. Era tão óbvio nos olhos de Maria que ela não compreendia coisa alguma, que tinha o coração e a mente em mundos opostos, que pouco sabia das coisas que Isabel sabia — mas também estava óbvio nos olhos de Isabel que Maria era mulher de melhor sorte e, ainda que falhasse como rainha, era por terem nascido em épocas erradas. Isabel encostou o dedo no lábio de Maria e disse baixinho que sua vida era uma seqüência interminável de boas pessoas enviadas por Deus nos piores momentos, e que seu fardo era vê-las todas indo embora, indo embora às vezes por seus próprios meios. Doía-lhe matar outra rainha, rainha como ela, que havia passado por tudo que ela também havia vivido, ainda que com casamento; talvez por isso mesmo tão rainha quanto ela, que fugira do matrimônio mas enfrentara o país e os anos. No entanto... a coroa era sua. Então Maria se ergueu e tornou a se abaixar, ajoelhada com a cabeça sobre as pernas de Isabel, e as duas entrelaçaram os dedos, e as duas sabiam que naquele dia Isabel escreveria Elizabeth Regina na sentença de morte de Maria, e que cortariam o pescoço de Maria e Isabel guardaria sua cruz de ouro como lembrança. Mas, durante longos minutos, o que lhes importava era apenas que suas mãos estavam dadas e que o fim, ainda que tardiamente, estava próximo. O fim, que era o começo.
quarta-feira, 20 de julho de 2011
Coração de Leão
Postado por Julia às 22:52 2 comentários
Marcadores: Inglaterra
sexta-feira, 20 de maio de 2011
Tightrope
Essa rainha em especial não tem quem escreva por ela. A corte, as damas de companhia, a cavalaria, os cavaleiros, os serventes. Ninguém que escreva por ela, que lhe dê uma face poética, que a represente com uma pintura grandiosa que um dia será trancafiada num museu que ninguém visita. No entanto a isso a rainha dirige um semblante de indiferença e um suspiro; sempre seus suspiros. Vai morrer com os pulmões limpos porém sempre virtualmente inúteis, ainda que não saiba. É como se respirasse com outros órgãos. Aquela metáfora velha e gasta de respirar com o coração mas talvez, caso alguém escrevesse por ela, se pensasse em dizer que na realidade a rainha respira através da coroa, uma inspiração e expiração extra-corpóreas, e pela própria distância entre seus órgãos e a coroa mais difícil, lenta, trabalhosa, ansiosa, debilitada. Muitas metáforas são possíveis quando você tem quem escreva por você: alguém dotado de criatividade e bom pulso poderia falar sobre os espelhos do quarto, como mostravam diversos ângulos da rainha, por isso mesmo todos questionáveis, mas quem entrasse no quarto via os espelhos e os reflexos e os deflexos, de modo a nunca saber exatamente como eram os olhos da rainha ou as maçãs do rosto da rainha; alguém dotado de criatividade e bom pulso poderia falar da voz da rainha, sobre como sempre parecia ressoar no quarto mesmo quando ela mantinha os lábios bem juntos um do outro; alguém dotado de bons olhos e pulso firme poderia desenhar a rainha, a baixa estatura, os cabelos cheios, as tintas, as cores. No entanto a rainha, e isso é de autoria própria, sem que ninguém lhe possa distorcer a voz ou os modos, não quer saber de retratos e biografias que não sejam de próprio punho. Às vezes, quase sempre, pra ser rainha, a gente tem que ser sozinha. Se esse fardo e o de ser malvisto, incompreendido, por fim detestado, cabem a todos os seres humanos, o que resta para a rainha regente apontada e coroada? Ela sentou-se muito reta na cama macia e seus olhos se demoraram no espelho do extremo oposto do quarto, o único quebrado. A imagem perfeitamente refletida, a despeito de todas as leis da óptica que impediam essa impressão, lhe devolveu uma expressão de soberania que ela mesma não exibia. Mas entendeu o recado. E sorriu de volta.
Postado por Julia às 20:38 3 comentários
Marcadores: Cáucaso
sábado, 7 de maio de 2011
Uma rainha que bem podia ter sido publicada aqui
Postado por Mayra às 21:18 2 comentários
Marcadores: Sedna
domingo, 20 de março de 2011
Don't You
I'll put us back together at heart, babe
Postado por Julia às 20:30 6 comentários
Marcadores: Inglaterra
Tainted Love
Acho que quando se é rainha nunca se pode de fato insultar qualquer pessoa, apenas ser violentamente perseguida, e por isso sinto que se há um destinatário capaz de compreender meus sentimentos esse destinatário é você. Hoje, Maria querida, eu penso em nós duas com amargura. Nossas histórias são tão parecidas que deveríamos ter nos unido como as irmãs que de certa maneira somos. Ambas sabemos, e espero que você me perdoe como eu a perdôo, que no entanto isso jamais seria possível, pois a própria semelhança nas histórias talvez seja responsável pela fome que carregávamos.
Oh baby baby, where did our love go?
Postado por Julia às 00:26 2 comentários
Marcadores: Inglaterra
quinta-feira, 27 de janeiro de 2011
Criatura da noite
Ser rainha é tão mortalmente cansativo que não posso nem tentar começar a entender por que alguém viria a querer ser uma. Ser rainha, meus amores, minhas lindas, lamentavelmente não é escolha; sei que não escolhi, nasci rainha e nasci o pior tipo, o mais odiado, o mais colorido, o mais venenoso. Sabe que acho mesmo que quanto mais a gente sofre menos a gente entende? Então. Não entendo quem corre atrás da realeza. Ou você nasce rainha ou nasce pra ser rainha; outro jeito não tem, não adianta tentar, linda.
Eu nasci rainha, como já disse. A coisa se mostrou óbvia desde que eu era muito criança: não porque roubasse as maquiagens da minha mãe ou usasse os saltos dela, era algo próprio e que creio estar na minha pele, até hoje vejo nela, reluzente, a expressão clara de uma rainha: você viu isso nas maiores e vê em mim também. Depois, claro, vieram os saltos e as meias, que prefiro arrastão vermelha, trama grande; queria dizer que é por algum motivo filosófico do tipo nada me prende mas tudo me prende, mas prefiro arrastão vermelha da trama grande porque acho um tesão e tudo que faço nessa vida, meu amor, é expor a minha condição de rainha com o máximo possível de tesão. A minha cabeça quando for cortada — e há de ser cortada, toda sorte de navalha já passou pelo meu pescoço e falta nada pro corte da vez ser fatal — vai ter que ser cortada com elegância e com tesão. Por menos que isso eu não me dou o trabalho, não vale o meu suor.
Postado por Julia às 00:34 5 comentários
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