quinta-feira, 18 de março de 2010

Confecção de Coroas

Antes de tudo aqui se tem um compromisso com a verdade. Eis o compromisso, selado com um anel de ouro e um beijo caloroso na frente do padre: se a verdade é muito bonita, conte; se a verdade é muito feia, torne-a bonita. Então falemos a verdade, que é bonita à sua maneira: Morgana não era rainha nem princesa. Não falamos da Morgana le Fay, ou Fata Morgana, Princesa da Bretanha, que também teve umas verdades meio bonitas, e outras assustadoras. Essa Morgana era uma garota diferente. Onde a beleza entra é fácil de se ver. Aqui há sempre uma queda pelas injustiçadas e via de regra as rainhas e princesas foram injustiçadas, cada uma por um motivo, e todas tiveram um final - e, por vezes, um começo - tétrico. Essa Morgana era plebéia da região mais pobre de Portugal. Trabalhava no campo, e o campo naquela época era triste e cinzento, ainda mais do que os campos de hoje, onde se crê no idílio. As folhas mais bonitas já eram muito amarelas e a comida era escassa; quando havia, era mal-cozida, mal temperada, e não havia gosto em comer. Por isso Morgana era muito magra e muito fraca. Não conseguia correr pelos campos, mal tinha forças para colher as raízes mortas. Então Morgana lia. Claro, à época impressões eram caras, e o único material para se ler sempre era o jornal da coroa, que Morgana não entendia bem, mas sentia que não gostaria, se entendesse. O que Morgana lia eram as estrelas. Quando era muito cedo e o Sol ainda doía nos olhos míopes sem tratamento da moça, tentava procurar os pequenos pontinhos brancos no lábaro azul. Às vezes não conseguia, e sua mãe, com a cadência que só o português luso tem, lhe gritava para parar de olhar tanto para o céu, que seus olhos ficariam cegos. Morgana não discutia, pois a mãe também era fraca, e era dada a desmaios, e seus nervos eram delicados. Então Morgana começava a ler as vozes dos outros camponeses a gritar, lia as reações, lia os passos. Morgana se dedicava, sem saber, a ler a vida. E lia todos os dias, e lia com avidez; e quando chegava a noite lia as estrelas imaginando nelas as faces que lia durante o dia, e aos poucos começou a dar uma nova forma àquelas estrelas, e dar a elas novos sentidos, e descrever-lhes as órbitas, que ela nem sabia bem o que eram . É claro, o compromisso com a verdade não nos permite chamá-la de Rainha Morgana, Princesa Morgana, Imperatriz Morgana, nem de nada. Era só plebéia Morgana. Ninguém Morgana. Nada Morgana. Mas se seu coração não lhe conferia a realeza de cem mil coroas, então nenhuma outra rainha merece o título que tem.

 

8 comentários:

Carolina disse...

Depois de um texto como esse, como insistir na idéia de que aqui também não seria lugar pra sentir?

Simplesmente adorável. Adorável, adorável, adorável! Tanto que Morgana merece até uma vassalagem - estamos falando da realeza de cem mil coroas, afinal. ♥

Maria Luísa disse...

Você descreveu esse conceito de realmente ver as coisas da maneira mais genial e bonita possível.

Tangerina disse...

. . .

Calma. Eu vou ali respirar bem fundo e me acalmar, enxugar as lágrimas dos olhos, apagar o sorriso idiota do rosto e telefonar para a minha melhor amiga falando sobre o texto e já volto.

*vinte minutos depois*

Eu... eu... tá. Cara. Eu amei. Muito. Mesmo. Mesmo. Mesmo. Eu fui ler toda ansiosa, pensando na ideia das rainhas-que-não-são-rainhas, imaginando a personagem que você iria criar e coisa e tal.

Eu adorei ser uma personagem nas suas mãos. Sério. Eu tô aqui, amei, chorei, li 15 vezes e não cansei, fiquei pensando e não consegui chegar a conclusão nenhuma, que mudou minha vida para melhor e me fez sentir uma coisa bonita.

Ai, Júlia. Eu te amo. ♥

Agora, saindo do lado fangirl emocionada por ver seu nome num texto (haha, como se eu conseguisse sair disso), viva as rainhas-que-não-são-rainhas, as rainhas simples, as rainhas da vidas, as rainhas com cabeças e sem coroas.

... Eu amei. Mesmo.

Mayra disse...

Depois de um texto como esse, como insistir na idéia de que aqui também não seria lugar pra sentir? [2]


Senti até os ossos do meu cu, depois dessa.

bruna disse...

eu sei que é idiota, mas sabe o que é ? minha madrasta se chama morgana, não consegui pensar em outra coisa.

Lemi disse...

Desprovida de uma cabeça para usar um chapéu e tirá-lo, reverencio com um aplauso a proposta deste blog. A princípio não achei que os posts girassem sempre em torno do nome do blog, acharia difícil explorar muitos temas em cima do mesmo assunto. Mas vocês estão executando essa ideia muito bem, parabéns.

Letícia Dias disse...

Que lindo *-*

Esse texto dá esperança a nós, plebeias, sabe? Você não precisa ter coroa pra ser rainha (principalmente quando você não tem cabeça).

E você não pode não amar todas as rainhas de coração espalhadas por aí ♥

Tangerina disse...

Vim ler de novo, só para dizer que amei, mais uma vez. ♥

 
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