domingo, 21 de março de 2010

Vida Seca

A primeira rainha do mundo surgiu numa das curvas do Golfo do México. Foi, é claro, sorte comum das rainhas, decapitada; mas não até muitos e muitos anos de governo se passarem. Tinha a pele escura e o cabelo da cor do nanquim. Naturalmente não conhecia nanquim nem kajal, mas a comparação lhe servia com justiça. A primeira rainha do mundo foi escolhida pelo povo. Ficava à frente nas batalhas e era excelente estrategista. A primeira rainha do mundo se comportava como alguém que Maria Antonieta chamaria de selvagem e que revoltaria o estômago das czarinas. E receberia a admiração suprema de todas as mulheres orgulhosas dos nossos tempos. Não se sabe ao certo o nome dela, da primeira. Conta-se entre umas poucas famílias mexicanas, antigas, intocadas pela seca, pelo silêncio e pelo desprezo, que a primeira rainha era muito mais baixa do que a estatura média da tribo, e que isso sempre a favorecia nas batalhas. Que corria mais rápido do que o vento e que se esterilizara tão cedo quanto sua menarca. A primeira rainha pegou em armas e sabia onde achar as melhores frutas para as crianças de seu povo. Então um dia se feriu na guerra. O corte na perna era longilíneo e sangrava todas as noites e todos os dias. E logo não podia mais andar direito. Caía. Nunca antes havia caído. Ralava os joelhos, feria os braços ao buscar apoio. Era uma cena de dar pena. Passou a ficar. nas linhas de trás, gritando comandos. Mas aos poucos a doença drenou também sua voz, e ela passou a sinalizar. Cada um dos membros da rainha foi sendo metaforicamente arrancado, sem qualquer anestesia, pois, mesmo se houvesse alguma à época, julgariam a rainha forte demais para merecê-la. Tão logo a rainha não podia mais indicar as melhores frutas, pois seus braços eram feridos e fracos; seus olhos se tornaram míopes, astigmáticos; a audição, que não era muito boa, antes compensada pela agilidade, passou a ser cobrada. A rainha, que fora a primeira figura de poder de toda a humanidade, agora era a primeira figura de passado. De uma glória hoje finda. A rainha ergueu bem o pescoço comprido e tirou do resto do seu orgulho a força para caminhar. Pensava em como acabar com aquilo. Para o bem do seu povo. Que viesse uma nova rainha, uma mulher forte e cheia de saúde, desempenhar o papel que ela agora descansava sobre a mesa primitiva, com suas plantas primitivas. E sua cabeça rolou pelo chão. Não por vontade própria, pois sua idéia era uma simples renúncia e um recolhimento às margens do rio, onde o Sol abraçaria sua pele escura com amor; o novo estrategista de guerra da tribo não era muito bom, ou talvez fosse um espião, e a primeira medida dos povos inimigos foi livrar-se da incômoda rainha. Teria sido mais correto que lhe arrancassem o coração, selando de outra forma a sorte de todas as mulheres rainhas, princesas ou imperatrizes, que desde lá ficaram assombradas para sempre por um busto sem cabeça; mas as tribos antigas não tinham qualquer noção de anatomia.

9 comentários:

Carolina disse...

Disse antes, e digo agora: adoravelmente espirituoso ♥

Mayra disse...

A forma moldou esse conteúdo de maneira adorável.

Fernanda disse...

Achei um dos mais bonitos até agora. Talvez porque tenha gostado da construção da rainha, do retrato primitivo, da majestade que não veio da realeza. Ficou triste a maneira como o fato de ela ir envelhecendo foi retratada. Não sei, parece que pessoas assim sempre deveriam morrer jovens. Enfim. O texto doeu, e ficou lindo.

Unknown disse...

cara, ficou ótimo. imaginei ela correndo por aí, careca e com os peitos balançando, vários colares e gritando.

mas ah, uma sugestão. helena de tróia? ehuheu eu sei que ela não morreu sem cabeça, mas acho deveras interessante. (trabalho sobre ilíada right now (Y))

Filipa Santos Lopes disse...

Acho que eu ainda não tinha comentado aqui, embora tenha lido todos os textos desde o início, e desde o início tenha pensado no quanto vocês duas têm talento e, acima disso, sensibilidade. Textos como este, textos como outros nos arquivos daqui, que conseguem tocar quem lê, que conseguem fazer sentir, e que ainda por cima são tão originais como não existe em mais lado nenhum, merecem uma vénia.
E vocês, Rainhas, têm a minha.

♥ :*

Mayra disse...

Vocês, reis e rainhas, me salvam de ter minha cabeça cortada a cada caractere que comentam aqui.

Maria Luísa disse...

e agora eu recolho o meu queixo do chão.

Mayra disse...

Porra, esse texto tá muito lindo. Dá até só de postar em cima.

Tangerina disse...

A mulher da foto despertou uma paixão platônica em mim, fato. Gente, olha essa pele, olha essas costas... Linda.

Mas enfim. O texto! Ah, céus! Maldição através dos séculos. Ficou tão... lindo. Mesmo. Tudo, toda a força da Rainha, coitada, definhando aos poucos. Ficou forte, ficou bonito, ficou... ah... e essa mulher da foto... ♥

Ficou foda, Júlia. Tu é boa demais para ser verdade, cara.

 
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